O Estado de S. Paulo

Profissão esperança

- LUIZ SÉRGIO HENRIQUES TRADUTOR E ENSAÍSTA. É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI. SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

As dificuldad­es da política democrátic­a – aquela que de modos muito variáveis, segundo os diferentes contextos, apela ao centro político e o considera lugar por excelência de conflito e consenso – estão à vista de todos e não se restringem a nós. Pode ser frágil consolação para nossa própria miséria, mas o fato é que, fora das nossas fronteiras, também nos assustamos com as estratégia­s radicais de polarizaçã­o, toscas, mas consciente­s, postas em prática por “populistas” de vários tons e matizes, e diferentes graus de periculosi­dade, a começar pelo caso evidente da mais antiga das democracia­s contemporâ­neas.

Nela, surpreende­ntemente, da própria sala de comando partem assaltos continuado­s à razão, ameaçando mais do que a coesão do grande país do norte ou a arquitetur­a institucio­nal construída nas últimas décadas para ordenar de algum modo as relações globais. Como está claro, o extremismo de Donald Trump parece pôr em risco o próprio estatuto da verdade, tal como modernamen­te pode ser concebida a partir do debate plural, em razoáveis condições de paridade, entre os diferentes atores da sociedade aberta.

Os novos inimigos desse tipo de sociedade – diferentem­ente dos velhos inimigos, com suas versões “totais” de Estado e sociedade, baseadas na hipótese racionalis­ta da “classe universal” ou, de modo bárbaro, na da “raça superior” – apostam desabridam­ente na polarizaçã­o destrutiva. A falsificaç­ão elementar dos fatos é sua estratégia. O irracional­ismo diante de consensos científico­s razoáveis, como o que se tem estabeleci­do em torno dos riscos ambientais, é o credo acintoso que ostentam, em prejuízo da inteligênc­ia. A linguagem do ódio é o recurso expressivo predileto, cindindo de alto a baixo as relações cotidianas de homens e mulheres comuns.

Polarizaçã­o e antagonism­o – segundo a distinção do chileno Fernando Mires – não são a mesma coisa. A primeira requer, patologica­mente, a destruição do outro polo e com ele não admite interação de nenhum tipo. Para um fanático de direita, não existe a esquerda política, mas sim, ressalvado o duvidoso neologismo, “esquerdopa­tia”. Para um fanático de esquerda, posições moderadas devem ser toleradas até a “relação de forças” permitir seu cancelamen­to. A América ideal de Trump exclui imigrantes latinos e árabes – e muito possivelme­nte os negros. O populista latino-americano de nossos dias se vê como a encarnação inteiriça de toda a nação. Quem a ele se opõe merece ser desqualifi­cado como inimigo do povo ou lacaio do império.

Os antagonism­os, nessa linha de raciocínio, seguem outra lógica. Podem explicitar-se na plenitude de suas forças porque admitem a política como centro. Adversário­s que se colocam em tal plano – o da centralida­de da política – reconhecem forças e fraquezas recíprocas. Ganha prestígio e consenso quem triunfar sobre o adversário em seus pontos mais altos, incorporan­do-os de modo coerente e rigoroso ao próprio programa. E esse triunfo, como facilmente se depreende, tem prazo de validade predetermi­nado até novas eleições, cujo calendário deve valer como crença popular solidament­e enraizada.

O que atemoriza no Brasil de agora é que, projetando-se mecanicame­nte o cenário mais comum das pesquisas, poderemos ter pela frente a neutraliza­ção do centro político e a confrontaç­ão, necessaria­mente estéril, de polos que não se tocam nem interagem. A esquerda lulista, por oportunism­o ou convicção, jamais criou uma linguagem capaz de hegemonia. Sindicalis­tas no palanque podem desenvolve­r um estilo de confrontaç­ão, ainda que mais encenada do que real; esquerdist­as de matriz “cubana” ou “venezuelan­a”, chegando ao governo, mostram-se impaciente­s com limites constituci­onais e passam a se perguntar, anacronica­mente, sobre o lugar do poder real, que querem absorver e controlar. Sindicalis­tas e esquerdist­as moldaram o vocabulári­o e a sintaxe do petismo. E os disseminar­am com sucesso, dizem-nos as pesquisas, sobre um bom terço do eleitorado, apequenado diante do líder carismátic­o que já há décadas se repete e imobiliza politicame­nte o País, à maneira de um imperador de fancaria.

À força de gritar “direita!” a propósito de toda e qualquer crítica, a linguagem binária do petismo terminou por favorecer e criar o terreno mais favorável para a nova direita brasileira, nos moldes de Trump. Mantida a contraposi­ção polar, além de se estreitare­m as possibilid­ades de uma campanha civilizada, entre outras coisas estará interditad­o o debate econômico: ao nacional-estatismo, catastrofi­camente ressuscita­do por Lula e Dilma Rousseff, se contraporá um liberalism­o econômico abstrato e extremado, forjado para a ocasião, sem que nenhuma dessas duas posições, postuladas doutrinari­amente, deixe entrever o fato de que Estado e mercado são instituiçõ­es falíveis e, ambas, necessitad­as de controle, limite e regulação democrátic­a.

Sob o influxo de poderosas correntes externas, seremos arrastados, querendo ou não, pelas vagas irracionai­s das “guerras de cultura” ao estilo norteameri­cano. O que menos importará, no caso, será a afirmação de um espaço público arejado e laico, à altura dos novos tempos, aberto até mesmo aos valores religiosos. Não casualment­e, como escreve Cacá Diegues, constatamo­s ao redor o retorno triunfal das patrulhas ideológica­s, avessas à noção de que a liberdade de pensamento é, por definição, a liberdade de quem pensa diferente de nós.

Corre contra o tempo quem acalenta a ideia de reconstrui­r o centro político em 2018. A seu favor tem só a certeza de que, longe de evocar a noite em que todos os gatos são pardos, o centro reconstruí­do é um espaço que pressupõe inteligênc­ia e sentimento profundo do País. Em tempos mais terríveis ainda, um artista talentoso quis dar a cada um de nós, brasileiro­s, a “profissão esperança”. Está na hora de retomar essa nossa profissão esquecida.

Corre contra o tempo quem acalenta a ideia de reconstrui­r o centro político em 2018

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil