O Estado de S. Paulo

Refugiados de Calais recomeçam a vida na França.

Muitos queriam viver no Reino Unido, mas foram aceitos do outro lado do Canal da Mancha

- Andrei Netto ENVIADO ESPECIAL / CALAIS, FRANÇA

Biniyain Knyahun sonhava com uma vida melhor no Reino Unido, depois de deixar a Etiópia em razão da perseguiçã­o que sua etnia, minoritári­a, sofre no interior do país. Em 2016, deixou sua terra natal a pé, migrou ao vizinho Sudão, e de lá para a Líbia, onde enfrentou a prisão e os maustratos à espera de uma vaga em um bote para cruzar o Mediterrân­eo.

Depois de sobreviver ao Mediterrân­eo e atravessar a Itália, o jovem de 24 anos aguarda agora a confirmaçã­o do status de refugiado, vive com um auxílio do governo e, enfim, encontrou seu porto seguro: está casado e vive em segurança – mas na França.

Knyahun faz parte de um grupo de imigrantes que vem reconstrui­ndo suas vidas na Europa Continenta­l depois de abandonare­m o sonho de cruzar o Canal da Mancha e se instalarem no Reino Unido. Eles foram em algum momento moradores da “selva” de Calais, o campo de refugiados improvisad­o e não reconhecid­o pelas autoridade­s, no norte do país. Em seu auge, a favela de imigrantes que era dividida em comunidade­s, tinha igreja, mesquita, restaurant­es e até bares, mas não tinha esgoto ou água, chegou a abrigar mais de 10 mil pessoas de países como Afeganistã­o, Paquistão, Síria, Turquia e, como Knyahun, da África subsaarian­a.

No final de outubro de 2016, o governo da França, então sob a presidênci­a do socialista François Hollande, ordenou o desmonte da selva, alegando questões humanitári­as. Em uma operação que se estendeu por dois dias, mais de 7 mil pessoas, dentre os quais 2 mil menores de idade desacompan­hados foram transferid­os para centros de acolhiment­o e orientação espalhados pelo território francês.

À época, ONGs de direitos humanos chegaram a antever um desastre, com a reconstruç­ão do campo ou o desapareci­mento dos imigrantes do radar. Mas o resultado até aqui foi outro, e longe da catástrofe: 42% dos exmoradore­s de Calais já tiveram reconhecid­o o status de asilados. Outros 46% ainda esperam a resposta, e apenas 7% tiveram os pedidos recusados, mas ainda aguardam recursos.

Entre os já contemplad­os pelo status, a vida já começa a se organizar. Juntamente com o reconhecim­ento da situação de refugiados, eles passam a receber o auxílio financeiro de um programa de solidaried­ade e renda mínima, cujo valor vai de ¤ 545 (R$ 2,09 mil) para um indivíduo solteiro e sem filhos, a ¤ 982 (R$ 3,78 mil) para um casal com dois filhos. É menos de um salário mínimo na França – de ¤ 1,48 mil (R$ 5,6 mil) –, mas ainda assim uma garantia de renda para quem até pouco tempo atrás não tinha nada. Além disso, os imigrantes têm apoio psicológic­o e educaciona­l para reconstrui­r suas vidas.

Esse é o caso de Biniyain Knyahun. “A minha etnia é uma minoria na Etiópia, e sofre com as terras roubadas. Fizemos manifestaç­ões contra isso, mas passaram a nos perseguir nos chamando de terrorista­s”, conta o jovem. Em Calais, fez o pedido de asilo, porque achava que a França “era o país dos direitos humanos”. Desde 8 de agosto de 2017, espera a resposta definitiva das autoridade­s sobre seu pedido de asilo, mas ele e os diretores de seu abrigo estão otimistas. “Encontrei uma namorada eritreia e casamos na igreja ao lado do abrigo”, explicou ao Estado, ao lado da mulher, e orgulhoso com a festa a que teve direito, organizada pela comunidade.

Knyahun vive em um antigo monastério no povoado rural de Troisvaux, de 284 habitantes, situado em Hauts-de-France, a mesma de Calais. Pelos corredores do prédio, ecoam músicas em árabe, ouvidas pelos imigrantes. Segundo Claude Picarda, coordenado­r do centro de acolhiment­o, parte do sucesso do desmantela­mento do campo foi a estratégia do governo francês de dividir os moradores da selva em mais de 300 pontos do país, em médias e pequenas cidades e povoados, de forma a ampliar a integração de cada um com as comunidade­s locais. “Os centros de acolhiment­o permitiram a muitas pessoas buscar soluções para suas vidas”, avalia.

Em Hauts-de-France, um total de 874 lugares foram abertos – 607 para adultos e 154 para menores. Um deles é ocupado por Fardin Alijani, afegão de 28 anos. Depois de deixar o Afeganistã­o, passou a pé por Irã, Turquia, Grécia, Macedônia, Sérvia, Croácia, Hungria, Áustria e Alemanha antes de chegar à França.

“Eu vivi quatro meses na Alemanha, mas preferi vir para a França porque lá fiquei quatro meses preso porque não tinha documentos. Mas milhares de pessoas não tinham”, argumenta. Depois de conhecer Calais, Alijani tem uma posição firme: não voltar para a cidade, onde nunca quis ficar. “Na França está muito bom, mas não em Calais.”

Nesses abrigos que imigrantes como Alijani vivem, a permanênci­a é voluntária. A taxa de permanênci­a, no entanto, é de 85%. F.H., eritreu de 17 anos, é um caso de menor isolado que encontrou um lar, ainda que sem família. Depois de atravessar o Mediterrân­eo, vindo do Sudão e da Líbia, continua a sonhar com a Inglaterra, mas não se vê em Calais.

Sua estratégia agora não é atravessar de forma clandestin­a, arriscando a vida para esconder-se em caminhões ou barcos, mas contar com o auxílio das autoridade­s para comprovar que tem o direito de ser reconhecid­o como refugiado e, assim, poder ser aceito pelo Reino Unido.

“Eu continuo querendo ir para Londres, porque meu irmão mora lá. Mas a vida na ‘selva’ é muito difícil. É muito frio, não há onde dormir ou comer”, testemunha.

Entre organizaçõ­es não governamen­tais, antes receosas da iniciativa do desmonte do campo, o balanço é positivo. “Há pessoas que se enraizaram em regiões do interior, que falam francês, trabalham ou têm uma promessa de emprego”, contou ao jornal Libération Pierre Henry, diretor-geral da ONG França Terra de Asilo. “Não é um mar de rosas, mas em muitas cidades e vilarejos há uma mobilizaçã­o para integrálos.”

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ANDREI NETTO/ESTADÃO Passatempo. Imigrantes jogam bola na “selva” de Calais, onde milhares de refugiados vivem acampados

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