Refugiados de Calais recomeçam a vida na França.
Muitos queriam viver no Reino Unido, mas foram aceitos do outro lado do Canal da Mancha
Biniyain Knyahun sonhava com uma vida melhor no Reino Unido, depois de deixar a Etiópia em razão da perseguição que sua etnia, minoritária, sofre no interior do país. Em 2016, deixou sua terra natal a pé, migrou ao vizinho Sudão, e de lá para a Líbia, onde enfrentou a prisão e os maustratos à espera de uma vaga em um bote para cruzar o Mediterrâneo.
Depois de sobreviver ao Mediterrâneo e atravessar a Itália, o jovem de 24 anos aguarda agora a confirmação do status de refugiado, vive com um auxílio do governo e, enfim, encontrou seu porto seguro: está casado e vive em segurança – mas na França.
Knyahun faz parte de um grupo de imigrantes que vem reconstruindo suas vidas na Europa Continental depois de abandonarem o sonho de cruzar o Canal da Mancha e se instalarem no Reino Unido. Eles foram em algum momento moradores da “selva” de Calais, o campo de refugiados improvisado e não reconhecido pelas autoridades, no norte do país. Em seu auge, a favela de imigrantes que era dividida em comunidades, tinha igreja, mesquita, restaurantes e até bares, mas não tinha esgoto ou água, chegou a abrigar mais de 10 mil pessoas de países como Afeganistão, Paquistão, Síria, Turquia e, como Knyahun, da África subsaariana.
No final de outubro de 2016, o governo da França, então sob a presidência do socialista François Hollande, ordenou o desmonte da selva, alegando questões humanitárias. Em uma operação que se estendeu por dois dias, mais de 7 mil pessoas, dentre os quais 2 mil menores de idade desacompanhados foram transferidos para centros de acolhimento e orientação espalhados pelo território francês.
À época, ONGs de direitos humanos chegaram a antever um desastre, com a reconstrução do campo ou o desaparecimento dos imigrantes do radar. Mas o resultado até aqui foi outro, e longe da catástrofe: 42% dos exmoradores de Calais já tiveram reconhecido o status de asilados. Outros 46% ainda esperam a resposta, e apenas 7% tiveram os pedidos recusados, mas ainda aguardam recursos.
Entre os já contemplados pelo status, a vida já começa a se organizar. Juntamente com o reconhecimento da situação de refugiados, eles passam a receber o auxílio financeiro de um programa de solidariedade e renda mínima, cujo valor vai de ¤ 545 (R$ 2,09 mil) para um indivíduo solteiro e sem filhos, a ¤ 982 (R$ 3,78 mil) para um casal com dois filhos. É menos de um salário mínimo na França – de ¤ 1,48 mil (R$ 5,6 mil) –, mas ainda assim uma garantia de renda para quem até pouco tempo atrás não tinha nada. Além disso, os imigrantes têm apoio psicológico e educacional para reconstruir suas vidas.
Esse é o caso de Biniyain Knyahun. “A minha etnia é uma minoria na Etiópia, e sofre com as terras roubadas. Fizemos manifestações contra isso, mas passaram a nos perseguir nos chamando de terroristas”, conta o jovem. Em Calais, fez o pedido de asilo, porque achava que a França “era o país dos direitos humanos”. Desde 8 de agosto de 2017, espera a resposta definitiva das autoridades sobre seu pedido de asilo, mas ele e os diretores de seu abrigo estão otimistas. “Encontrei uma namorada eritreia e casamos na igreja ao lado do abrigo”, explicou ao Estado, ao lado da mulher, e orgulhoso com a festa a que teve direito, organizada pela comunidade.
Knyahun vive em um antigo monastério no povoado rural de Troisvaux, de 284 habitantes, situado em Hauts-de-France, a mesma de Calais. Pelos corredores do prédio, ecoam músicas em árabe, ouvidas pelos imigrantes. Segundo Claude Picarda, coordenador do centro de acolhimento, parte do sucesso do desmantelamento do campo foi a estratégia do governo francês de dividir os moradores da selva em mais de 300 pontos do país, em médias e pequenas cidades e povoados, de forma a ampliar a integração de cada um com as comunidades locais. “Os centros de acolhimento permitiram a muitas pessoas buscar soluções para suas vidas”, avalia.
Em Hauts-de-France, um total de 874 lugares foram abertos – 607 para adultos e 154 para menores. Um deles é ocupado por Fardin Alijani, afegão de 28 anos. Depois de deixar o Afeganistão, passou a pé por Irã, Turquia, Grécia, Macedônia, Sérvia, Croácia, Hungria, Áustria e Alemanha antes de chegar à França.
“Eu vivi quatro meses na Alemanha, mas preferi vir para a França porque lá fiquei quatro meses preso porque não tinha documentos. Mas milhares de pessoas não tinham”, argumenta. Depois de conhecer Calais, Alijani tem uma posição firme: não voltar para a cidade, onde nunca quis ficar. “Na França está muito bom, mas não em Calais.”
Nesses abrigos que imigrantes como Alijani vivem, a permanência é voluntária. A taxa de permanência, no entanto, é de 85%. F.H., eritreu de 17 anos, é um caso de menor isolado que encontrou um lar, ainda que sem família. Depois de atravessar o Mediterrâneo, vindo do Sudão e da Líbia, continua a sonhar com a Inglaterra, mas não se vê em Calais.
Sua estratégia agora não é atravessar de forma clandestina, arriscando a vida para esconder-se em caminhões ou barcos, mas contar com o auxílio das autoridades para comprovar que tem o direito de ser reconhecido como refugiado e, assim, poder ser aceito pelo Reino Unido.
“Eu continuo querendo ir para Londres, porque meu irmão mora lá. Mas a vida na ‘selva’ é muito difícil. É muito frio, não há onde dormir ou comer”, testemunha.
Entre organizações não governamentais, antes receosas da iniciativa do desmonte do campo, o balanço é positivo. “Há pessoas que se enraizaram em regiões do interior, que falam francês, trabalham ou têm uma promessa de emprego”, contou ao jornal Libération Pierre Henry, diretor-geral da ONG França Terra de Asilo. “Não é um mar de rosas, mas em muitas cidades e vilarejos há uma mobilização para integrálos.”