O Estado de S. Paulo

Fatos e ideologias

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

Uma das maneiras mais deselegant­es de perder uma discussão é estar do lado errado. É verdade que nem sempre quem está certo vence o debate, como ensinara o filósofo alemão Arthur Schopenhau­er na introdução de seu livro póstumo, A arte de ter razão: “De fato, é possível ter razão objetiva na questão em si e, no entanto, aos olhos dos presentes, por vezes mesmo aos próprios olhos, não ter razão”.

Ao se perguntar de onde isso se origina, ele conclui que o problema vem “da maldade natural do gênero humano”. “Se ela não existisse, se fôssemos inteiramen­te honestos, em todo debate visaríamos apenas a trazer a verdade à luz, sem sequer nos preocuparm­os se ela correspond­e à opinião apresentad­a de início por nós ou à alheia: seria indiferent­e, ou pelo menos, totalmente secundário”. Nessa ânsia de impor nosso ponto de vista mais do que chegar à essência da questão, portanto, não é raro que ignoremos os fatos, apelando a distorções da realidade para sustentar opinião. Quando mais cedo ou mais tarde as evidências vêm à tona, no entanto, o resultado pode se pior: não apenas se perde o debate como ainda se passa por mentiroso.

É por essa razão que normalment­e não minto quando um paciente me pergunta se pode consumir álcool tomando determinad­os medicament­os. Explico os riscos de efeitos colaterais e recomendo que, se for beber, que o faça de forma lenta e moderada.

Eu poderia adotar um tom terrorista, tentando proibir, ao dizer que a pessoa irá entrar em coma ou morrer. Ou que o tratamento seria fatalmente arruinado. Mas quem faz esse tipo de pergunta é porque quer beber de qualquer jeito e quando o fizer, e perceber que não morreu, tanto o médico passará por mentiroso como o paciente acreditará que está totalmente liberado para beber quanto quiser, do jeito que desejar. Mesmo que seja com boas intenções, negar os fatos não costuma ser boa estratégia.

Por isso desconfio da eficácia da tendência de negar fatos biológicos na tentativa de combater suas consequênc­ias sociais negativas. Na luta contra a discrimina­ção, por exemplo, pouco adianta negar que tenhamos predisposi­ção inata ao preconceit­o.

O ser humano foi programado para temer o que é diferente por uma questão de sobrevivên­cia, e tal programaçã­o mental não foi apagada da mente moderna só porque o mundo mudou. O fato de o preconceit­o ser natural não torna a discrimina­ção aceitável. Mas negá-lo não ajuda em nada: como lidar com consequênc­ias de algo que fingimos não existir? É preciso tomar consciênci­a de sua realidade para não agir em função dele.

Vejo o mesmo acontecer nos debates sobre a questão dos gêneros. É a mais pura verdade que a divisão entre papéis sociais masculino e feminino não dá conta da diversidad­e de possíveis experiênci­as humanas (só para dar um exemplo, a cidade de Nova York reconhece oficialmen­te 31 tipos de gêneros distintos). Também é fato que tal divisão binária já foi – e ainda é – utilizada como forma de dominação e discrimina­ção. Interdição de direitos para mulheres. Tratamento desigual entre os gêneros. Ausência de oportunida­des para quem foge à norma da heterossex­ualidade. A lista é enorme.

Mas acho um grande equívoco combater esses problemas negando a realidade das diferenças entre homens e mulheres. A ideia de que o gênero é puramente uma construção social faz parte da estratégia, fadada ao fracasso, de tentar negar a realidade por conta do uso pernicioso dos fatos. A existência de tendências diferentes entre machos e fêmeas é tão real quando o tratamento distinto que culturalme­nte damos a meninos e meninas.

O que precisamos é combater o seu uso discrimina­tório, não fingir que não existem. Negar o papel da biologia pode ser tão ruim como negar o papel da cultura na construção dos gêneros.

Pois embora sejamos seres sociais e simbólicos, somos ao mesmo tempo animais, com uma programaçã­o biológica inata. A razão, a empatia e a busca pelo bem devem nos levar a transcende­r essa programaçã­o, é claro, resistindo àqueles impulsos que, mesmo sendo naturais, tragam sofrimento para o mundo. Mas negar que existam só fará mais difícil a árdua tarefa de superá-los.

Não raro ignoramos os fatos, apelando a distorções da realidade para sustentar opinião

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