Fatos e ideologias
Uma das maneiras mais deselegantes de perder uma discussão é estar do lado errado. É verdade que nem sempre quem está certo vence o debate, como ensinara o filósofo alemão Arthur Schopenhauer na introdução de seu livro póstumo, A arte de ter razão: “De fato, é possível ter razão objetiva na questão em si e, no entanto, aos olhos dos presentes, por vezes mesmo aos próprios olhos, não ter razão”.
Ao se perguntar de onde isso se origina, ele conclui que o problema vem “da maldade natural do gênero humano”. “Se ela não existisse, se fôssemos inteiramente honestos, em todo debate visaríamos apenas a trazer a verdade à luz, sem sequer nos preocuparmos se ela corresponde à opinião apresentada de início por nós ou à alheia: seria indiferente, ou pelo menos, totalmente secundário”. Nessa ânsia de impor nosso ponto de vista mais do que chegar à essência da questão, portanto, não é raro que ignoremos os fatos, apelando a distorções da realidade para sustentar opinião. Quando mais cedo ou mais tarde as evidências vêm à tona, no entanto, o resultado pode se pior: não apenas se perde o debate como ainda se passa por mentiroso.
É por essa razão que normalmente não minto quando um paciente me pergunta se pode consumir álcool tomando determinados medicamentos. Explico os riscos de efeitos colaterais e recomendo que, se for beber, que o faça de forma lenta e moderada.
Eu poderia adotar um tom terrorista, tentando proibir, ao dizer que a pessoa irá entrar em coma ou morrer. Ou que o tratamento seria fatalmente arruinado. Mas quem faz esse tipo de pergunta é porque quer beber de qualquer jeito e quando o fizer, e perceber que não morreu, tanto o médico passará por mentiroso como o paciente acreditará que está totalmente liberado para beber quanto quiser, do jeito que desejar. Mesmo que seja com boas intenções, negar os fatos não costuma ser boa estratégia.
Por isso desconfio da eficácia da tendência de negar fatos biológicos na tentativa de combater suas consequências sociais negativas. Na luta contra a discriminação, por exemplo, pouco adianta negar que tenhamos predisposição inata ao preconceito.
O ser humano foi programado para temer o que é diferente por uma questão de sobrevivência, e tal programação mental não foi apagada da mente moderna só porque o mundo mudou. O fato de o preconceito ser natural não torna a discriminação aceitável. Mas negá-lo não ajuda em nada: como lidar com consequências de algo que fingimos não existir? É preciso tomar consciência de sua realidade para não agir em função dele.
Vejo o mesmo acontecer nos debates sobre a questão dos gêneros. É a mais pura verdade que a divisão entre papéis sociais masculino e feminino não dá conta da diversidade de possíveis experiências humanas (só para dar um exemplo, a cidade de Nova York reconhece oficialmente 31 tipos de gêneros distintos). Também é fato que tal divisão binária já foi – e ainda é – utilizada como forma de dominação e discriminação. Interdição de direitos para mulheres. Tratamento desigual entre os gêneros. Ausência de oportunidades para quem foge à norma da heterossexualidade. A lista é enorme.
Mas acho um grande equívoco combater esses problemas negando a realidade das diferenças entre homens e mulheres. A ideia de que o gênero é puramente uma construção social faz parte da estratégia, fadada ao fracasso, de tentar negar a realidade por conta do uso pernicioso dos fatos. A existência de tendências diferentes entre machos e fêmeas é tão real quando o tratamento distinto que culturalmente damos a meninos e meninas.
O que precisamos é combater o seu uso discriminatório, não fingir que não existem. Negar o papel da biologia pode ser tão ruim como negar o papel da cultura na construção dos gêneros.
Pois embora sejamos seres sociais e simbólicos, somos ao mesmo tempo animais, com uma programação biológica inata. A razão, a empatia e a busca pelo bem devem nos levar a transcender essa programação, é claro, resistindo àqueles impulsos que, mesmo sendo naturais, tragam sofrimento para o mundo. Mas negar que existam só fará mais difícil a árdua tarefa de superá-los.
Não raro ignoramos os fatos, apelando a distorções da realidade para sustentar opinião