O Estado de S. Paulo

Sobre pizza e honestidad­e

- RUTH MANUS E-MAIL: RUTH.MANUS@ESTADAO.COM RUTH MANUS ESCREVE AOS DOMINGOS

Dentre as muitas más ideias que as pessoas podem ter, uma das piores certamente é fazer compras de supermerca­do em família. Esse momento definitiva­mente não é compatível com as noções de convivênci­a e harmonia. Trata-se de uma estrada cujo destino, único e certo, é a discórdia.

Num certo sábado de fim de verão, o universo arquitetou este desafio para nós. Por alguma razão infeliz estávamos na rua no fim da tarde e a necessidad­e de passar no supermerca­do, marido, mulher e criança juntos, apresentou-se como imperiosa. Eu ainda suspirei, pensei em alguma forma de evitar a situação, mas não foi possível.

Chegamos ao supermerca­do e os pequenos conflitos começaram já na segunda gôndola. Os debates iam desde o tamanho do guardanapo até o quão maduro estava o mamão. Mas dentre tantas faíscas que iam surgindo dentro do carrinho, uma merece destaque: a pizza congelada.

Minha enteada, com seus 7 anos, ao passar pela seção de congelados, pegou uma pizza, que nos pediu para levar. O pai disse que aquilo era uma porcaria, eu disse que nós já comíamos pizza fora de casa, e que em casa a comida precisa ser mais saudável. Dissemos para que ela escolhesse outra coisa. Mas a paixão pela pizza congelada era tanta que nenhum docinho foi capaz de derrubá-la. Acabamos por liberar a pizza, mas frisando que nós dois éramos contra, e que aquilo era um caso excepciona­l.

Fomos embora, chegamos em casa, guardamos as compras com mais alguns pequenos atritos e a vida seguiu. Passou o domingo, a segunda e a terça. Na quarta, jantamos cedo uma bela sopa de legumes, peito de frango, arroz integral, berinjela no forno, cubinhos de melão. Tudo corria nos conformes. A miúda dormiu antes das 22 e nós fomos assistir a uma série.

Já era quase uma da manhã quando as personagen­s norte-americanas começaram a comer uma pizza deliciosa com as mãos, com aqueles fios de queijos esticando entre a boca e a fatia que se afasta. Nossos olhos brilharam. Meu marido comenta, sem perceber o perigo “está-me mesmo a apetecer uma pizza”. Eu, já sofrendo, penso na pizza do congelador.

Aguento por uns 40 segundos, até olhar para ele e dizer: a pizza. No congelador. A pizza da miúda. No congelador. Ele arregala os olhos, como se tivesse descoberto a coisa mais fantástica e promíscua do universo. Ficamos em silêncio mais uns 30 segundos. Olhamos um para o outro. Ele define: vamos comer e amanhã colocamos outra no lugar.

O sentimento de culpa que me invade, embora seja grande, não consegue ser maior do que a vontade de comer a pizza. E assim ela foi para o forno, o queijo derreteu, a massa ficou crocante, nós acabamos com tudo e jogamos a caixa no lixo. Fomos dormir como se nada tivesse acontecido. Era quase um tabu.

Ocorre que na manhã seguinte aconteceu o impensável. Por alguma estranha razão, a pequena, entre o curto intervalo de acordar, se vestir, tomar leite, escovar os dentes e sair para a escola, encontrou tempo para levar um papel ao lixo da cozinha. E então nosso mundo caiu.

Ela, com um aspecto assombrado, vira-se para nós e diz, incrédula e decepciona­da: OH PÁ!! VOCÊS COMERAM A MINHA PIZZA SEM MIM?! Nós dois só queríamos pular pela janela do terceiro andar para não precisar lidar com aquele constrangi­mento. Balbuciei algo do tipo “querida... é que seu pai... teve uma dor de estômago... e precisava comer uma coisa quentinha... e acabou o frango... por isso pegamos a pizza... para ele melhorar... mas nós vamos comprar outra já já... fique tranquila”.

Ela nos olhou de cima a baixo e balançou a cabeça. Francament­e, pai. Francament­e, Ru. Ela tinha razão. Dissemos tantas vezes no supermerca­do que aquilo era uma porcaria... Depois comemos a porcaria escondidos da dona da porcaria.

Dentre as porcarias da casa, certamente nós dois éramos as piores.

Dentre as porcarias da casa, certamente nós dois éramos as piores

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