Um texto inédito de Neruda sobre García Lorca
Ensaio que trata abertamente da homossexualidade do poeta estava ausente da biografia ‘Confesso que Vivi’, agora recuperada em nova versão
Confesso que Vivi, as memórias nas quais Pablo Neruda trabalhou até pouco antes de sua morte, em 1973, foi publicado sem alguns dos escritos do prêmio Nobel chileno, alguns textos inéditos, entre eles um sobre Federico García Lorca, recuperados em uma edição ampliada.
Publicada pela editora Seix Barral, a edição ampliada de Confesso que Vivi foi colocada à venda esta semana e contém o texto “O último amor de Federico”, além de um álbum fotográfico e a reprodução em fac-símile de vários manuscritos do poeta. Essas memórias foram publicadas como parte da celebração dos 70 anos de Neruda, em 1974, lembra Darío Oses, no prólogo dessa nova edição, mas sua morte, precipitada pelo golpe militar no Chile, foi no dia 23 de setembro de 1973, razão pela qual o livro foi lançado como obra póstuma.
Em uma “cuidadosa” revisão dos arquivos da Fundação Pablo Neruda, encontraram-se vários textos relacionados com memórias: o primeiro em junho de 1973, com anotações manuscritas de Neruda sobre os temas que deveria incluir em Confesso, além de duas pastas com escritos autobiográficos inéditos. Entre eles, explica Oses, um relacionava-se a García Lorca, ao qual acrescentava uma explicação do porque o texto não seria publicado naquele momento.
“Será que o público está suficientemente livre de preconceitos para aceitar a homossexualidade de Federico, sem menosprezar seu prestígio?”, indaga Neruda. Nesse texto que agora vem a público, ele lembra como, nas tertúlias das quais participaram, García Lorca sempre esteve acompanhado de um jovem. Era Rafael Rapín, na realidade Rafael Rodríguez Rapún, que perdeu a vida durante a Guerra Civil espanhola, poucas semanas depois da morte do poeta: “Pouco restou do rapaz. Seus ossos e seu sangue se espalharam em fragmentos minúsculos, tonaram-se manchas quase invisíveis, sobre a terra espanhola, que tragava a cada dia milhares de outros mortos anônimos.”
Para Neruda, existe “uma forma obscurantista de tratar da homossexualidade de Federico García Lorca” e que era “a moda espanhola e latino-americana: esconder essa inclinação pessoal de Federico. Há muito, nessa atitude, de respeito pelo poeta assassinado. Mas existe também o tabu sexual, a herança eclesiástica do império e da colonização espanhola, a hipocrisia do século 19”.
Considerou una cortina de fumaça o fato de atribuírem à “singularidade erótica” de Lorca a possível causa de sua morte que, para ele, foi um “repugnante” assassinato político. Além do texto sobre García Lorca, foram encontradas nas pastas textos como “La muchacha del regreso” que, segundo Oses, “encaixa-se” em uma parte de suas memórias “quase com a mesma precisão da peça que faltava em um quebra cabeças”. Em Confesso que Vivi, Neruda narra os principais episódios de vida e as circunstâncias que envolveram a criação de poemas e livros mais famosos, além de relembrar das figuras de alguns amigos como Alberti, Miguel Hernández, Éluard, Aragão e sua relação com personagens destacados da política contemporânea.
A Seix Barral editou também uma edição comemorativa de A Barcarola, livro de poemas fundamental na obra de Neruda. A barcarola é uma forma musical que reproduz a cadência dos remos dos gondoleiros de Veneza, um ritmo que Neruda quis imprimir ao livro, publicado em 1967, que representa a plenitude de expressão alcançada por ele na última fase de sua produção literária.