O Estado de S. Paulo

O primeiro fósforo

- VERISSIMO LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Por mais pretensios­os que sejam, artistas não esperam que sua obra vá incendiar o mundo. Eles até pressupõem que, como o que fazem não é realidade, é apenas arte, têm uma liberdade tácita para serem extremados e irreverent­es o quanto quiserem. Humoristas têm essa licença presumida mais do que outros porque a sua é a arte do exagero, duplamente separada do real, portanto duplamente isenta de maiores consequênc­ias. Podem ser combatidos por poderosos com medo do ridículo mas jamais se imaginaria­m afrontando todo um sistema de crenças e preconceit­os. E de repente, como aconteceu com o ataque ao Charlie Hebdo na França e, mais recentemen­te no Brasil, com o escândalo causado por exposições que acabaram proibidas, artistas se descobrem premiados com esta dúbia distinção: sua arte atingiu um deus como se tocasse num nervo, e é comentada por uma nação inteira.

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A reação a charges como as que causaram o ataque ao Charlie Hebdo, e outras manifestaç­ões da revolta do Islã contra ofensas à sua fé surpreende­u em parte porque no Ocidente se perdeu o conceito de blasfêmia. Entre os sentimento­s ambíguos que essa revolta do Islã provoca se poderia incluir a inveja dos outros monoteísmo­s, que não contaram com o mesmo fervor dos seus fiéis contra a seculariza­ção. A ideia secularist­a de que o avanço da civilizaçã­o depende do declínio do sagrado é mais ou menos consensual, o que destaca o contraste entre o fanatismo islâmico e o pluralismo moderno.

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Mas existe uma civilizaçã­o muçulmana que, resistindo ao fanatismo, não relativizo­u o sagrado. Uma civilizaçã­o antiga que já foi mais avançada do que a europeia e foi, mesmo, corrida da Europa pelo fanatismo cristão. Ao mesmo tempo, em algumas das sociedades mais avançadas do mundo existem e prosperam crenças e seitas obscuranti­stas que representa­m o “sagrado” na sua forma mais primitiva, convivendo com a civilizaçã­o.

Querendo dizer o que? Que não há um choque de civilizaçõ­es nem um choque entre um mundo civilizado e um bárbaro. Há uma diferença entre um extremo do sentimento religioso para o qual a blasfêmia ainda é um mal absoluto e um extremo do pensamento secular que diz que nada deve ser sagrado, ou tudo pode ser gozado.

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O caso das exposições proibidas mostra que o pensamento fascista não é mais uma ameaça no Brasil, é uma realidade, e está crescendo. Fogueiras para a “arte decadente”, como os nazistas chamavam a arte moderna, estão prontas, só esperando o primeiro fósforo.

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