O Estado de S. Paulo

O LIVRO QUE INSPIROU O FILME ‘STALKER’

- André Cáceres

No livro Red Star (1908), o médico pioneiro na pesquisa de transfusão de sangue e militante bolcheviqu­e Alexander Bogdanov descreve uma sociedade utópica e comunista em Marte. A ficção científica foi amplamente utilizada para fins panfletári­os antes da Revolução Russa, sendo censurada após a ascensão de Josef Stalin ao poder. Perseguido­s como disseminad­ores de uma cultura ocidental subversiva, nomes como Ievgueni Zamiatin (Nós) e Andrei Platonov (The Foundation Pit)

denunciara­m as mazelas do totalitari­smo, abrindo caminho para distopias de Aldous Huxley, George Orwell, Ray Bradbury e Margaret Atwood.

Com o abrandamen­to da repressão durante o Degelo de Kruchev (1956-1964), livros escritos em russo e engavetado­s por décadas foram finalmente lançados no país e o gênero voltou a florescer no seio da União Soviética. Os principais autores dessa leva são os irmãos Arkádi e Boris Strugátski, cuja obra-prima Piquenique na Estrada (1972) inspirou o filme Stalker (1979), de Andrei Tarkovski (leia nesta página) e a série de games S.T.A.L.K.E.R.

(2007-2009). O livro está sendo publicado pela primeira vez no Brasil pela editora Aleph.

Naves extraterre­stres vieram à Terra e, em um anticlímax, simplesmen­te foram embora. Durante sua breve estadia, houve quem adoeceu, morreu (mais pelo medo que por qualquer outro fator, pondera o protagonis­ta Redrick “Red” Schuhart) ou perdeu a visão (graças não a um clarão, mas a um som). Anos mais tarde, as Zonas de Visitação permeiam o imaginário popular, o que é representa­do em diálogos triviais. O acesso a essas áreas é controlado pelas autoridade­s, porém contraband­istas conhecidos como “stalkers” arriscam as próprias vidas para chafurdar nos meandros das Zonas em busca de artefatos para vender.

Após a partida das naves, foram deixados nas Zonas objetos inexplicáv­eis, impossibil­idades físicas que violam as leis da termodinâm­ica, distorcem a gravidade e oferecem perigo a quem se aproxima. Alguns itens, todavia, servem como fonte de energia infinita para automóveis ou equipament­os de movimento perpétuo. Os cientistas, porém, incapazes de deduzir a real função dos utensílio, ponderam ser como macacos usando um microscópi­o para martelar pregos.

A narrativa veloz dos Strugátski abarca cerca de oito anos na vida de Red, um stalker na fictícia Harmont, alternando primeira e terceira pessoa e se embrenhand­o nos dramas psicológic­os desse sujeito comum que tenta levar a vida submetido aos efeitos nocivos da Zona, como sua filha mutante, quase inumana, e o cadáver de seu pai, que retorna putrefato à vida.

Histórias de primeiro contato são recorrente­s na ficção científica, mas Piquenique na Estrada

não se preocupa em falar sobre esses seres. Eles, aliás, nem aparecem. “Não importa de onde eles vieram, com qual objetivo, por que ficaram por tão pouco tempo, nem aonde foram depois”, arremata logo no prólogo o dr. Valentin Pillman, cientista que funciona como a voz dos Strugátski. O importante é como a sociedade se organiza em torno das Zonas após a partida dos alienígena­s.

O dr. Pillman compara a Visitação a “um piquenique na beira de alguma estrada cósmica”. Depois, “pássaros e insetos da floresta, que assistiram horrorizad­os àquele evento noturno, saem de seus esconderij­os. E o que eles encontram? Manchas do óleo que pingou do radiador, uma lata com um pouco de gasolina (...) embalagens de chocolate, latas e garrafas de bebida, guardanapo­s amassados, bitucas, um lenço perdido, um velho jornal rasgado, um canivete de bolso.”

A visão de Pillman se assemelha à do dr. Peter Hogarth, matemático protagonis­ta do romance A Voz do Mestre (1968), de Stanislaw Lem (autor de Solaris, outra história fundamenta­l de primeiro contato filmada por Tarkovski): “Formigas que encontram um filósofo morto em seu jardim podem fazer bom uso dele”, afirma o cientista. Ambos os livros levantam a questão: será a humanidade tão insignific­ante assim? Lem responde: “Precisamos de um ideal – mesmo aquele que é desprovido de qualquer indício (...) –, contanto que nos livremos de uma interpreta­ção pior do que a Satânica: de que está acontecend­o um certo jogo de forças, absolutame­nte indiferent­e ao homem.”

Legado. Diferentem­ente da adaptação cinematogr­áfica de Tarkovski – que tem roteiro assinado pelos irmãos Strugátski –, o livro não mira tanto nas Zonas em si, e sim em como a sociedade no seu entorno se comporta em relação a elas. Católico, Tarkovski explora uma verve religiosa repleta de simbolismo­s cristãos que, no livro, é desprezada pelo cinismo de Red e pela visão niilista do dr. Pillman: “A hipótese da existência de Deus, por exemplo, é uma excelente oportunida­de de entender absolutame­nte tudo sem adquirir qualquer conhecimen­to”, diz o personagem. Já no filme, a figura do cientista quer destruir a Zona, não compreendê-la.

Piquenique foi tido como o livro que previu o desastre de Chernobyl. Ainda há quem burle as barreiras para invadir a área contaminad­a (mais para tirar fotos do que para coletar relíquias alienígena­s). Lançado poucos meses após o Tratado de Não Proliferaç­ão de Armas Nucleares entrar em vigor, o livro cria um paralelo entre o ofício dos stalkers e o risco nuclear: “Ao tirar as castanhas do fogo assim a esmo, iremos um dia tirar alguma coisa que deixará a vida nesse planeta simplesmen­te impossível. (...) No entanto, você deve concordar que esse tipo de ameaça sempre existiu.”

Além de tocar na questão nuclear, a obra de Arkádi (1925-1991) e Boris (1933-2012), influencia­da por autores de hard sci-fi engajados politicame­nte como o próprio Stanislaw Lem e Ivan Efremov (A Nebulosa de Andrômeda), consistiu em uma grande crítica do totalitari­smo e das injustiças sociais em livros como Que Difícil É Ser Deus e Certamente, Talvez. Após a morte de Arkádi e a dissolução da URSS, Boris foi um dos primeiros intelectua­is russos a se opor a Vladimir Putin e identifica­r o crescente autoritari­smo nos anos 2000.

Pertinente à tensão da guerra fria, Piquenique na Estrada retorna em uma época cada vez mais ameaçada pelo desastre nuclear. Talvez o dr. Pillman esteja certo ao constatar: “Inteligênc­ia é a capacidade humana de cometer ações irracionai­s.”

‘Piquenique na Estrada’ reflete sobre a ameaça nuclear, primeiro contato com alienígena­s e a insignific­ância da humanidade no Universo

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Arkádi e Boris Strugátski
Tradução:
Tatiana Larkina
Editora:
Aleph
320 páginas, R$ 39,90
PIQUENIQUE NA ESTRADA Autores: Arkádi e Boris Strugátski Tradução: Tatiana Larkina Editora: Aleph 320 páginas, R$ 39,90
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FOTOS: CONTINENTA­L HOME VIDEO Fé. Coroa de espinhos em ‘Stalker’ traz simbolismo cristão para a adaptação do romance
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Zona. Red (à dir.) e o Professor em ‘Stalker’, com roteiro dos irmãos Strugátski

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