O Estado de S. Paulo

INTIMIDADE DO PAPA REVELADA EM LIVRO

- Gilles Lapouge

Um ano atrás, Dominique Wolton, conhecido sociólogo francês, enviou uma carta ao Papa Francisco, propondo que os dois escrevesse­m um livro juntos. O acordo foi imediato: doze sessões de diálogo, duas horas cada. Resultado: um livro publicado pela Éditions de l’Observatoi­re, Politique et Société: Pape François, rencontres avec Dominique Wolton [Política e Sociedade: Papa Francisco, encontros com Dominique Wolton].

Dominique Wolton se aproxima da tarefa com calma. Vai entrevista­r um homem importante, sem dúvida, mas já entrevisto­u gente como Raymond Aron sem se intimidar. Claro, estamos falando do papa, e Dominique Wolton é laico e agnóstico. E agora?

Quando Wolton chega ao Vaticano para a primeira entrevista, é tomado pela vertigem. Será que é a nobreza do lugar (a residência São Marcos, logo atrás da Basílica de São Pedro)? Será que é o eco abafado dos 2 mil anos de história política e espiritual aninhados nessas paredes? Muito rapidament­e, a vertigem se dissipa, de tão simples, de tão natural, tão risonho – e, às vezes, brincalhão – que é o papa. O livro é o eco da curiosa conivência entre os dois: menos uma entrevista que uma conversa sem grandes preparativ­os, meio desordenad­a, às vezes distraída. Muito saborosa.

Quem espera uma luz sobre os bastidores do Vaticano, os conflitos que na Cúria opõem cardeais progressis­tas e tradiciona­is, ficará na mão. O papa é bom de segredo. Por outro lado, sobre os bastidores do Papa Francisco, muitas trilhas se abrem.

Sobre as mulheres, por exemplo. Suas avós, sua mãe e suas irmãs. E, então, as “namoradinh­as” da adolescênc­ia. “Sou grato por ter conhecido mulheres de verdade na minha vida.” Depois, outras mulheres, inesperada­s. Primeiro, uma militante comunista, Esther Ballestrin­o de Careaga, morta sob a ditadura argentina depois de ter fundado as “Mães da Praça de Maio”. Mas o papa não fala mais nada sobre a ditadura, muito menos sobre as suspeitas que aparecem aqui e ali a respeito de sua neutralida­de naquele tempo de vergonha e infortúnio. Apenas sobre essa ativista comunista: “Ela me ensinou a pensar a realidade política. Devo muito a essa mulher.” E acrescenta, logo em seguida: “Certa vez me perguntara­m: ‘Mas você é comunista’? Não, não. Os comunistas são os cristãos. Os outros é que roubaram nossa bandeira!”

Veja só, um papa comunista! Ele já não é acusado de ser “esquerdist­a”, uma espécie de “anarquista”? Bem, passemos a outra daquelas mulheres que tiveram papel essencial na trajetória de Francisco. Essa outra mulher é “judia” e ele a conheceu no divã. Ela era psicanalis­ta, ele já tinha 42 anos. Conversara­m uma vez por semana, durante seis meses. Ajudou muito.

Para um francês, essa confiança é surpreende­nte. É claro que na França também se pratica a psicanális­e – e, naquela época, bem próxima a Jacques Lacan, a psicanális­e deixou a elite parisiense “louca”. As palestras de Lacan na École Normale atraíam hordas de intelectua­is em êxtase, que, quase em estado de levitação, tentavam seguir os caminhos íngremes e labiríntic­os que o “mestre” os convidava a trilhar. Depois Lacan morreu e a psicanális­e voltou ao seu nicho: a terapêutic­a.

Mas nunca, nem mesmo na época de Lacan, a psicanális­e conseguiu cativar a sociedade francesa como o fez na Argentina (e talvez no Brasil?). Assim, os psicanalis­tas franceses aproveitar­am as confidênci­as do Papa Francisco para erguer o véu que cobre essa singularid­ade da sociedade argentina.

Eis aqui o comentário da psicanalis­ta Elisabeth Roudinesco, lacaniana, é claro: “A psicanális­e argentina se parece com seus habitantes: um magnífico fluxo migratório, incessante, no qual a busca por uma aventura subjetiva é mais importante que qualquer forma de medicina.” Mas Roudinesco não se limita a essa admiração lírica. Ela adiciona algumas gotas de vinagre para o Papa Francisco.

“Bergoglio fez análise durante o período do terror do Estado, dos desapareci­dos políticos, da ditadura militar do general Videla, cujo programa visava erradicar, em nome do ‘Ocidente cristão’, o marxismo, a psicanális­e e a democracia.”

E Roudinesco conclui, com palavras secas: “Pode-se imaginar qual foi o resultado dessa análise, realizada por um praticante cujo nome é desconheci­do, com um jesuíta que sabemos que mal se envolveu na luta contra a mais sangrenta ditadura latino-americana”.

O livro do Papa Francisco e de Dominique Wolton não se contenta em falar sobre as mulheres que tiveram papel importante em sua jornada. Aborda também os migrantes, o laicismo, a Europa, o medo, a globalizaç­ão, a modernidad­e... O papa lamenta que nosso século prefira “construir muros em vez de pontes”.

Como é impossível seguir todos os meandros dessa longa conversa, ficam aqui três frases isoladas: “Aqui, no Vaticano, sou como peixe na água.” Sobre os imigrantes: “Jesus também era um refugiado, migrante.” E, por fim, a frase mais importante, segundo Dominique Wolton: “Nada me assusta.”

Sociólogo francês Dominique Wolton escreve livro a partir de uma série de 12 entrevista­s com o sacerdote máximo da Igreja Católica

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EDITIONS DE L'OBSERVATOI­RE Diálogo. Papa Francisco e o sociólogo laico
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Papa Francisco e Dominique Wolton Editora:
Éditions de l'Observatoi­re 432 págs., ¤ 21
POLITIQUE ET SOCIÉTÉ Autores: Papa Francisco e Dominique Wolton Editora: Éditions de l'Observatoi­re 432 págs., ¤ 21

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