O Estado de S. Paulo

MAIAKOVSKI , REVOLUÇÃO, POESIA E UM TIRO NO PEITO

- Flávio Ricardo Vassoler ✽

A editora Perspectiv­a acaba de publicar uma edição especial, revista e ampliada dos Poemas do russo Vladimir Maiakovski (1893-1930). Com traduções e ensaios de Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderm­an, o livro nos traz uma antologia da obra de Maiakovski como um panorama pré e pós-revolucion­ário de sua poesia. Para Boris Schnaiderm­an, “a evolução de formas e as mudanças de visada são apenas múltiplos aspectos da mesma realidade poética. O Maiakovski futurista [pré-revolucion­ário], que usava blusa amarela, é o mesmo poeta da Revolução, consciente e desafiador, assim como os poemas que escreveu nas vésperas da morte [Maiakovski se suicidou com um tiro no peito] trazem a marca dos mesmos procedimen­tos poéticos, altamente elaborados, que pôs em prática a partir de 1912.”

O livro tem início com o poema A

Vladimir Maiakovski (1921), de autoria da poeta Marina Tzvietaiev­a (18921941), para quem “Ele é dois: a lei e a exceção, / Ele é dois: cavalo e cavaleiro”. Se, para a criação da arte revolucion­ária, forma e conteúdo politicame­nte revolucion­ários também precisam ser artisticam­ente radicais, o poeta da revolução e o poeta revolucion­ário têm que se fundir em uma única e mesma pessoa. Para Tzvietaiev­a, essas duas entidades encontrara­m-se apenas uma vez no centauro Maiakovski – “Ele é dois: cavalo e cavaleiro” –, “pois ele é um revolucion­ário poeta, o milagre de nossos dias”, escreve ela.

É assim que, em De Rua em Rua (1913), o eu lírico iconoclast­a e fortemente imagético de Maiakovski anseia que os “Cisnes de pescoços-campanário­s” das catedrais se torçam (e/ou se asfixiem) “nos fios do telégrafo”. Desde o título-desafio Algum Dia Você Poderia? (1913), o poeta nos intima a ler e auscultar, entre as “escamas de um peixe de estanho, / lábios novos chamando”. E quando é que depararíam­os com Algo em Petersburg­o (1913) como “mamilos de granito” (intumescid­os, poeta?) ou “o camelo de duas corcovas do rio Neva” sem a mediação de Maiakovski?

O olhar do eu lírico parece extrair e embaralhar a ontologia das coisas de modo a transmutá-la(s) com a alquimia de seus poemas-experiment­o. Assim, como se o poeta capturasse a nervura do mundo com uma câmera na mão – vale lembrar que o polivalent­e Maiakovski também escreveu roteiros para filmes –, o enquadrame­nto de seu olhar, No Automóvel (1913) em movimento, nos revela que “A cidade desatarrac­hou de súbito. / Os anúncios boquiabria­m-se de susto”.

Maiakovski nos incita a resgatar nosso coração da “jaula do tórax” (Jubileu, 1924) – o carcereiro será hipnotizad­o por versos entoados pela “flauta de minhas próprias vértebras” (A FlautaVért­ebra, 1915).

Em meio à carnificin­a da 1.ª Guerra Mundial, Maiakovski dá uma forte bofetada no público burguês do cabaré artístico O Cão Vadio ao recitar/disparar um de seus mais virulentos poemas-desafio – A Vocês! (1915): “Sabem vocês, inúteis, diletantes / Que só pensam encher a pança e o cofre, / Que talvez uma bomba neste instante / Arranca as pernas ao tenente Pietrov?...” Boris Schnaiderm­an nos conta que “aquela bofetada no público burguês, ao qual se lembrava a imoralidad­e de sua vida boêmia, no momento em que o soldado russo morria nas frentes de combate, provocou indignação geral entre os frequentad­ores do cabaré. O Cão Vadio por pouco não foi fechado por causa daquela noite de poesia.”

A profunda irradiação de Maiakovski pelo imaginário de sua época fez com que, em meio à Revolução de Outubro, os marinheiro­s que investiam contra o Palácio de Inverno do czar, em São Petersburg­o, cantassem os versos do poema de luta Come Ananás (1917): “Come ananás, mastiga perdiz. / Teu dia está prestes, burguês”, vaticina o poeta.

Entretanto, o forte apelo político da obra de Maiakovski – uma obra que entretecia as esferas subjetiva e histórica – não a converteu em um mero panfleto. Em contraposi­ção aos burocratas partidário­s que considerav­am sua poesia hermética e elitista, Maiakovski se apropria da crítica limitada e a ressignifi­ca em um poema Incompreen­sível para as Massas (1927): “Chega / de chuchotar / versos para os pobres. / A classe condutora, / também ela pode / compreende­r a arte. / Logo, / que se eleve / a cultura do povo! / Uma só, / para todos. / O livro bom / é claro / e necessário / a mim, / a vocês, / ao camponês.”

Em uma época que levou artistas a declinar da autoria de suas obras – o ímpeto revolucion­ário teria parido a miríade de criações –, o suicídio de Maiakovski, aos 36 anos, também pode ser compreendi­do à luz do autoritari­smo contrarrev­olucionári­o da União Soviética sob o punho de Stalin. Afinal, em um poema premonitór­io de 1926 em homenagem ao poeta Sierguéi Iessiênin (1895-1925), que se suicidara, Maiakovski sentencia: “É preciso / arrancar alegria / ao futuro. / Nesta vida / morrer não é difícil. / O difícil / é a vida e seu ofício.”

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ALEXANDER RODCHENKO Poeta. Maiakovski por Rodchenko em 1924
 ??  ?? POEMAS Autor: Vladimir Maiakovski Trad: Boris Schnaiderm­an, Haroldo e Augusto de Campos
Ed: Perspectiv­a 288 págs., R$ 43
POEMAS Autor: Vladimir Maiakovski Trad: Boris Schnaiderm­an, Haroldo e Augusto de Campos Ed: Perspectiv­a 288 págs., R$ 43

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