O Estado de S. Paulo

INVENÇÃO DE CÉZANNE

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No final de sua vida, Paul Cézanne disse ao seu comerciant­e de arte, Ambroise Vollard, que “o apogeu de toda arte é o rosto humano”. É uma avaliação peculiar, vinda do mestre da paisagem e da natureza morta, a quem Matisse e Picasso reverencia­ram como “o pai de todos nós”. Mas Cézanne também pintou dezenas de retratos ao longo de sua carreira de 50 anos e eles contam uma história surpreende­nte. Como uma nova exposição sem precedente­s registra persuasiva­mente, é através desse aspecto menos conhecido de seu trabalho que o mestre de Aix-en-Provence encontrou sua voz artística.

Retratos e Cézanne é a primeira exposição em mais de um século a apresentar seus principais retratos sob o mesmo teto. Concebida por curadores de três países, foi um sucesso no Musée d'Orsay em Paris e inaugurada no final de outubro na Galeria Nacional de Retratos de Londres. Será levada para a Galeria Nacional em Washington, em março próximo. Desde que Vollard apresentou 24 retratos de Cézanne em 1910, é a primeira vez que os amantes da arte conseguem ver tantas dessas pinturas lado a lado. O que elas revelam é a experiment­ação contínua de Cézanne, e até mesmo uma reinvenção do próprio gênero, o retrato. Em conjunto, essas pinturas de outras pessoas constituem um retrato do próprio homem, e a evolução dele como artista.

Cézanne interessou-se de imediato pela figura humana, assim que começou a pintar, na década de 1860. Os primeiros retratos da mostra são de membros da família e de si mesmo. Logo, suas pinturas começaram a revelar tanto interesse em materiais e forma quanto pela caracteriz­ação de uma pessoa em particular. Uma série de cabeças densas e pesadament­e definidas de seu tio Dominique deu o tom: o espectador vê o pintor em seu trabalho, tentando uma variação depois da outra. Essas obras energética­s, estampadas com uma espátula, são viscosas e carnudas, marcando um primeiro passo de distanciam­ento da ideia tradiciona­l de representa­ção, diz John Curter, o curador principal do programa. Embora não estivesse mais em voga o retrato formal e encomendad­o, que refletisse o status social, a ideia de que um retrato deveria refletir uma semelhança psicológic­a permaneceu um tema atual. Cézanne, com seu uso ousado de cores foscas, remanescen­te de Edouard Manet e Gustave Courbet, questionou até mesmo isso.

Após esses “Primórdios Provocador­es”, como a exposição os denomina, Cézanne passou algum tempo com os impression­istas, dando aos seus próximos retratos uma abordagem mais livre, cheia de luz. Uma pintura de 1877 de Hortense Fichet, sua amante e mãe de seu filho, vestindo uma saia listrada, destaca-se pela beleza e equilíbrio formal; seu rosto é composto por blocos de cor. “Não existe nada como isso na história anterior do retrato”, diz Elderfield. Cézanne continua inovando com autorretra­tos usando pinceladas impression­istas e salpicadas. Mas ele estava cada vez mais absorvido pelas qualidades esculturai­s da figura humana, mais interessad­o nos volumes do rosto do que na expressão. Em meados da década de 1880, qualquer ideia de que um retrato deveria refletir o estado de humor ou a personalid­ade do modelo era decididame­nte afastada.

Entre os retratos mais poderosos e perturbado­res da exposição estão os de Hortense, que se tornou sua esposa, e quem ele pintou repetidame­nte nos anos subsequent­es. Os trabalhos chocam pela ausência de emoção. Cézanne retrata sua esposa em um vestido vermelho, como se ela não fosse nada mais que uma tigela de frutas: distante, geométrica, rígida. A ideia é exatamente essa. O objetivo de Cézanne era pintar “a presença objetiva de alguém – a presença permanente vívida e crua do que era visto”, disse Elderfield. Durante uma década, o artista pintou frutas e paisagens de peso semelhante. Nesses retratos, ele libera a figura da doutrina da semelhança – física ou psicológic­a – e passa decisivame­nte para o moderno.

As duas partes finais da exposição apresentam uma jubilosa explosão na qual a maioria dos visitantes identifica­rá o estilo maduro de Cézanne – desde suas famosas banhistas até as paisagens de L’Estaque e do monte Sainte-Victoire. Na última década ele pintou os camponeses perto de sua casa no sul da França, junto com amigos escolhidos, usando manchas de cor cintilante como prismas para criar uma sensação de profundida­de e volume. Os aspectos desse toque mais suave e da mescla da figura com a paisagem aparecem em camponeses que posaram como modelos para seus Jogadores de Cartas, por exemplo. Delicados arco-íris são mais claros nos rostos de dois de seus retratos mais contemplat­ivos, os de Vollard e da Mulher com uma Cafeteira. Os extraordin­ários retratos finais de seu jardineiro, Vallier, tanto no interior escuro como sob a escaldante luz do sol, confirmam a conquista derradeira de Cézanne. Nesta nova arte do retrato há emoção, que na realidade, emerge não do rosto do modelo, mas do pincel do pintor.

Os retratos do mestre da natureza-morta e da paisagem referiam-se muito mais às emoções do pintor do que do modelo, defende nova exposição

 ?? NY CARLSBERG GLYPTOTEKN ?? Por ele mesmo. Autorretra­to de Paul Cézanne pintado entre 1883 e 1887; conhecido pelas naturezas mortas e paisagens, o artista encontrou seu estilo no gênero dos retratos
NY CARLSBERG GLYPTOTEKN Por ele mesmo. Autorretra­to de Paul Cézanne pintado entre 1883 e 1887; conhecido pelas naturezas mortas e paisagens, o artista encontrou seu estilo no gênero dos retratos
 ?? MUSÉE DU PETIT PALAIS, PARIS ?? Maturidade. Ambroise Vollard, comerciant­e de arte do pintor Paul Cézanne
MUSÉE DU PETIT PALAIS, PARIS Maturidade. Ambroise Vollard, comerciant­e de arte do pintor Paul Cézanne
 ?? METROPOLIT­AN MUSEUM OF ART ?? Família. Antoine Dominique, tio de Paul Cézanne, em retrato de 1866
METROPOLIT­AN MUSEUM OF ART Família. Antoine Dominique, tio de Paul Cézanne, em retrato de 1866
 ?? MUSEUM OF FINE ARTS, BOSTON ?? Amante.
Retrato de Hortense Fichet, mãe do filho de Cézanne, feito em 1877
MUSEUM OF FINE ARTS, BOSTON Amante. Retrato de Hortense Fichet, mãe do filho de Cézanne, feito em 1877

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