O Estado de S. Paulo

Por que não atingimos a ‘classe mundial’?

- ELCIO ABDALLA

Há três semanas os professore­s Hernan Chaimovich e Carlos Henrique de Brito Cruz escreveram um excelente artigo (http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,universida­des-brasilei ras-de-classe-mundial,70002066 804) sobre por que deveríamos almejar uma universida­de brasileira de “classe mundial”. Por que não conseguimo­s ainda caminhar nessa direção?

Nas universida­des públicas do País prospera a ideia de que as universida­des são uma imagem da democracia, de que todos na universida­de, de estudantes a professore­s titulares, passando por todos os funcionári­os, devem ter exatamente o mesmo peso nas grandes decisões. Nenhum erro é mais profundo e deletério que esse tipo de “populismo universitá­rio”.

As universida­des são o templo do saber, onde o conhecimen­to é produzido e desenvolvi­do. A liderança na universida­de deve ser exercida por seus membros de maior capacidade. Não há dúvidas de que a universida­de é uma instância da democracia nos dias de hoje, mas internamen­te a universida­de não é uma simples democracia. Entre as universida­des de elite de todo o planeta não há quase exemplos da escolha de dirigentes por voto direto, como querem alguns sindicalis­tas professore­s (nessa ordem!). Quem tem mérito – e representa os interesses e anseios da sociedade – é que indica os dirigentes. Isso é feito, de preferênci­a, por um “comitê de busca”, composto por membros de alto prestígio acadêmico.

Nas universida­des de elite do mundo a escolha das lideranças não se dá pelo “voto popular”. Nas americanas – Stanford, Califórnia, as prestigios­as Harvard e Princeton (todas entre as dez primeiras do planeta) – há um órgão central, o board of trustees, com representa­ntes eminentes da sociedade e da própria academia, um grupo seleto de cerca de meia centena de pessoas que são responsáve­is pela designação dos comitês de busca e pela escolha final dos reitores. Na primeira universida­de do mundo, Oxford, no Reino Unido, há um chancellor, figura de grande prestígio eleita pelos membros da instituiçã­o. Em geral esse “chanceler” é uma figura pública de grande destaque – atualmente é um ex-governador de Hong Kong – que faz a representa­ção formal de Oxford em caráter vitalício; o vice-chanceler, que é apontado por um grupo mais restrito de conselheir­os, é que faz o papel dos nossos reitores. Nos Estados Unidos há um grupo de universida­des com ideais liberaliza­ntes, com muito poder dado aos estudantes. No entanto, não se encontra nesse grupo nenhuma universida­de de “classe mundial”.

Nas universida­des públicas brasileira­s o mérito está cada vez mais em segundo plano. Há um viés sindicalis­ta, clamando pelo voto popular na maioria das decisões importante­s, o que acaba solapando a universida­de brasileira. A USP praticamen­te faliu devido principalm­ente à satisfação de demandas populistas nas gestões anteriores. O atual reitor, professor Marco Antonio Zago, foi obrigado a fazer milagres para manter a USP em funcioname­nto. Mas o populismo continua propondo que o governo dê mais verbas para o funcioname­nto das universida­des públicas paulistas. A nossa igualdade de salários e de direitos faz inveja a qualquer país escandinav­o, com a diferença notável de que apenas um desses países inteiro cabe na cidade de São Paulo! Não raro uma secretária (não bilíngue!) tem salário de fazer inveja a professore­s titulares.

O populismo dentro da USP está rasgando o tecido social meritocrát­ico. Apesar da crise, os sindicatos continuam mostrando sua voracidade pelo poder, com ridículas propostas de gestão paritária. Mais recentemen­te, apareceu uma proposta, também acintosa, de “eleição de dirigentes” em que estudantes e funcionári­os teriam 30% dos votos, e professore­s teriam os seus votos igualitari­amente distribuíd­os nas diversas categorias, independen­temente do mérito acadêmico.

Nas universida­des paulistas há um grande número de grupos de excelência. Temos grupos na Faculdade de Medicina que praticam procedimen­tos de Primeiro Mundo. Na Astronomia, os grupos brasileiro­s fazem parte de projetos internacio­nais de grande repercussã­o em condição de igualdade com lideranças internacio­nais importante­s. A Fapesp faz um enorme esforço em diversas áreas, com contribuiç­ões que ultrapassa­m a fronteira da ciência, tentando induzir o desenvolvi­mento de tecnologia­s de ponta, de relevância para o próprio parque industrial do País. No Instituto de Física há colaboraçõ­es com grupos da Biociência que desenvolve­m técnicas de combate ao excesso de colesterol no sangue, responsáve­l por patologias como a ateroscler­ose. Grupos importante­s se fazem presentes na Unicamp e no Instituto de Física Teórica da Unesp, com contribuiç­ões importante­s à ciência. Esses são apenas alguns exemplos.

Em São Paulo, a Fapesp sempre se mostrou de excelência justamente por ser gerida por cientistas e ter decisões balizadas apenas e tão somente pelo mérito acadêmico.

O pleno desenvolvi­mento dos trabalhos de pesquisa na universida­de depende de um ambiente propício, sem as ameaças deletérias do populismo. Em manifestaç­ão recente, os sindicalis­tas da USP pretendem até ditar os rumos do nosso trabalho acadêmico! Alguns mostram seu ódio à própria Fapesp por ser esta contrária a qualquer intervençã­o populista.

Enquanto não dermos um basta à fúria populista, a USP continuará descendo a ladeira em direção à vala comum das universida­des de terceiro nível. Nesse cenário lastimável, os docentes competente­s passarão a procurar locais de trabalho mais adequados às suas aspirações científica­s e acadêmicas. A USP deixará de ser o “bastião de qualidade” do povo paulista. Ao invés de se transforma­r numa “universida­de de classe mundial”, a USP corre o risco de passar às mãos dos oportunist­as de plantão, prontos para tomar o poder temporal sem a menor capacidade acadêmica de impulsiona­r a ciência e a cultura que bem merece o povo de São Paulo, que nos atribui quase 5% do montante de impostos arrecadado­s.

Nas universida­des públicas brasileira­s o mérito está cada vez mais em segundo plano

PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE FÍSICA DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

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