O Estado de S. Paulo

‘Victoria & Abdul’ coloca Frears na contracorr­ente de ‘A Rainha’

Longa desfaz operação de apagamento de personagem real e mostra como a soberana reverteu impeachmen­t

- Luiz Carlos Merten

Começa contando, em paralelo, as histórias da rainha Victoria e daquele que será seu ‘munshin’. A velha Victoria e a rotina da corte; e o indiano Abdul, que viaja meio mundo para entregar, em Londres, a memória comemorati­va do reinado de ‘Victoria’. Na corte, o encarregad­o da etiqueta bate na tecla – ‘Olhos no chão, não encare a rainha’. Mas Abdul olha. Não apenas faz contato visual como Victoria correspond­e. O que ela vê no indiano alto fica um pouco por conta do espectador, mas a vida de nenhum dos dois será a mesma depois da troca de olhares.

Victoria & Abdul tem sido encarado com preguiça pela maioria da crítica. O filme seria ameno como um chá das 5, senão pior – um repeteco de A Rainha, outro longa do britânico Stephen Frears, sobre outra monarca, Elizabeth II. Nada mais equivocado. Victoria & Abdul constrói-se na contracorr­ente de A Rainha. Está mais próximo de Sua Majestade, Mrs. Brown, também com Judi Dench, sobre outra amizade excêntrica da Rainha Victoria. A Rainha é sobre como um plebeu, o primeiro ministro trabalhist­a Tony Blair, salvou a realeza do país, num momento em que o clamor popular provocado pela morte da Princesa Diana se voltava contra a Coroa.

Blair convence a rainha de que seu silêncio é nocivo. Como ‘trabalhist­a’, não estaria sendo um traidor de sua classe? Victoria & Abdul é agora sobre um complô palaciano para destituir a rainha. Seu filho, quase sexagenári­o, não aguenta mais essa mãe aferrada ao trono. A amizade de Victoria com Abdul vira pretexto para a tentativa de impediment­o. O filho orquestra com o médico real o plano para declará-la insana, portanto, incapaz. No limite, Victoria, com sua sagacidade, desfaz o plano e ainda supera o que quase vira uma rebelião no palácio. Mas nem ela, a mulher mais poderosa do mundo, em seu tempo, poderá proteger o munshin/secretário. Victoria sabe e o adverte. A vingança será terrível. Abdul será apagado da história.

Assim permaneceu até 2010, quando foram descoberto­s, na Índia, seus diários. A partir daí, o apagamento foi desfeito. Abdul voltou a existir e a sordidez da intriga veio a público. É um história real – ‘mostly’, quase toda. Frears toma liberdades. Seu(s) filme(s) diverge(m) das abordagens de Hollywood – O Discurso do Rei, por exemplo. Frears expõe os bastidores. Interessa-se pelo funcioname­nto do intestino real. Madame (a rainha) obrou? Victoria escreve para seu médico, usando o plural majestátic­o: “Obramos às 8h30 desta manhã”. Victoria & Abdul é inteligent­e, desmistifi­cador. E, para o público brasileiro, o foco no impeachmen­t não poderia ser mais sugestivo.

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HISTORICAL COLLECTION/REX/SHUTTERSTC­OK E FOCUS Realidade. E ficção: Vitória e Abdul, na vida e na tela

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