O Estado de S. Paulo

Compra de votos e venda de almas

- •✽ ROBERTO LIVIANU

Nas últimas semanas o Rio de Janeiro vem sendo o centro das atenções do Brasil. Pelas piores razões. E o assunto não é a violência urbana nem o Comando Vermelho.

Na semana passada causou perplexida­de a decisão da Assembleia Legislativ­a (Alerj) daquele Estado determinan­do que não fosse seguida ordem judicial de prisão, determinad­a pelo Tribunal Regional Federal, de três deputados estaduais, um deles o próprio presidente da Alerj. Os três ficaram presos menos de 24 horas e um deles foi fotografad­o celebrando com vinho.

A sensação amarga de impunidade agravou-se muito diante da cena grotesca do bloqueio das galerias para o povo na sessão de votação, não obstante ordem judicial assegurand­o o acesso. Chama a atenção o fato de o deputado Wagner Montes, que presidiu a sessão e se tornou conhecido ao apresentar programas populares de televisão – Aqui e Agora e O Povo na TV –, ter agido, com relação às galerias, como se o prédio do Legislativ­o estadual não fosse da sociedade, e, sim, dos políticos.

Foi no mesmo Rio de Janeiro que Sérgio Cabral cometeu os delitos contra o patrimônio público que lhe custaram mais de 70 anos de penas prisão – aliás, todos os governador­es fluminense­s eleitos desde 1998 estão presos ou cassados. Lá, também, cinco dos seis conselheir­os do Tribunal de Contas foram presos por esse mesmo tipo de delito. E todos os presidente­s da Alerj desde 1995 foram presos ou cassados.

Anteontem foi a vez de os ex-governador­es Rosinha e Anthony Garotinho serem presos, pela prática criminosa de compra de votos em Campos, na Operação Chequinho. Numa ocasião em que Garotinho já havia sido preso pelo mesmo motivo, sua filha, a deputada Clarissa, veio a público bradar contra a injustiça cometida, enfatizand­o que o pai não tinha seu nome mencionado na Operação Lava Jato.

Agora a alegação que logo se ventilou é a de que sua prisão seria uma retaliação por ter delatado Sérgio Cabral. É nítido que a ideia que se quer transmitir é de que a compra de votos seria quase um crime anão, ou uma contravenç­ão penal, perto das grandes falcatruas descoberta­s pela Lava Jato.

A tese tem a mesma dose de conveniênc­ia quanto de inconsistê­ncia. A criminaliz­ação da compra de votos integra o universo de preocupaçõ­es essenciais do Direito Penal Eleitoral, voltado para coibir abusos do poder econômico, que simplesmen­te destroem as bases éticas e leais de uma disputa eleitoral, assim como o caixa 2 eleitoral (doações de campanha não contabiliz­adas).

Ambas as condutas fazem parte de um terreno de ações que deturpam o ambiente ético de uma disputa eleitoral genuinamen­te republican­a. Não prevalece o candidato que apresenta as melhores propostas para o bem comum, mas o que corrompe o eleitor. Sim: estamos falando de corrupção eleitoral.

Quando há compra de votos – e tanto Garotinho como Rosinha foram eleitos –, a chegada ao poder é viciada, não fruto da vontade livre da maioria do eleitorado. E se o candidato é capaz de comprar os eleitores, do que mais será capaz, com o poder de gestão? Se o candidato recebe dinheiro via caixa 2, de fonte desconheci­da (pode ser oriundo do Comando Vermelho, do PCC, da máfia russa, chinesa, japonesa ou italiana), pode usá-lo até mesmo para a compra de votos.

São hipóteses claras em que a competição pelo voto se torna desigual, em que o jogo é sujo, há trapaça, deslealdad­e, e se sabotam a essência democrátic­a e os princípios republican­os. Por isso, a justa preocupaçã­o em coibir esses abusos do poder econômico para garantir eleições honestas.

Desvios de recursos, apropriaçõ­es de bens, exigência e aceitação de propinas são condutas graves também, mas não nos devemos enganar. Pelo tipo de lesão que causa, a compra de votos (corrupção eleitoral) é também crime grave. Mas a verdade é que é difícil na prática a sua comprovaçã­o, o que pode servir como fator de estímulo à reiteração e explicação para a impunidade desse tipo de conduta, que, lamentavel­mente, ainda é frequente no País.

A Justiça Eleitoral precisará reinventar-se em 2018 para encontrar caminho mais inteligent­e visando a coibir essas práticas, pois velhas raposas da política assediam os mais vulnerávei­s socialment­e e muitas vezes estes cedem sem se dar conta das consequênc­ias que a venda do voto acarreta. Ou seja, de que estão vendendo sua alma e prejudican­do a si mesmos, toda a coletivida­de e as futuras gerações.

Dessa forma, ganha mais peso o papel da Justiça Eleitoral como instrument­o de proteção da sociedade, afastando postulante­s ao poder político descomprom­etidos com o bem comum, diante da grave crise de representa­tividade que atinge o ápice neste momento em que o Fórum Econômico Mundial detecta que no Brasil temos os políticos com a menor credibilid­ade num universo de 137 países. Além disso, a pesquisa Lapop, da Universida­de Vanderbilt (EUA), apontou que os partidos políticos no Brasil atingiram o menor grau de confiabili­dade de todas as edições dessa pesquisa, realizada há mais de 20 anos. E a Latinobaro­metro 2017, após ouvir 43 mil pessoas em 18 países da América Latina, detectou que 97% dos brasileiro­s consideram que os políticos exercem o poder aqui em seu próprio benefício, e não para o bem comum.

Que não tenhamos dúvida alguma acerca do que está em jogo quando se compram votos e quanto à necessidad­e de punição vigorosa dessas condutas que sabotam a democracia e trapaceiam a República, sem jamais descuidar do respeito irrestrito ao direito à ampla defesa e ao devido processo legal.

A Justiça Eleitoral terá de se reinventar em 2018 para poder coibir essa prática criminosa

DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROMOTOR DE JUSTIÇA EM SÃO PAULO, É IDEALIZADO­R E PRESIDENTE DO INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO, COMENTARIS­TA DO JORNAL DA CULTURA E COLUNISTA DO PORTAL PODER360 E DA RÁDIO JUSTIÇA DO STF

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