O Estado de S. Paulo

Três pilares em meio à incerteza

- •✽ BRASILIO SALLUM JR.

Há quase três anos a sociedade brasileira experiment­a instabilid­ade política de grandes proporções, que tem afetado profundame­nte a vida nacional. Ela ocasionou, entre outras coisas, a fragmentaç­ão e o desprestíg­io dos partidos que organizava­m e orientavam nossas escolhas políticas. Refirome particular­mente ao PT e ao PSDB. Internamen­te divididos, não conseguem mais ordenar o debate e apresentar alternativ­as para que possamos escolher nosso amanhã. No máximo, apresentam candidatos.

A instabilid­ade não produziu, porém, uma situação caótica. Há pelo menos três parâmetros que vêm pautando as disputas políticas atuais e, provavelme­nte, as que serão travadas em 2018.

O primeiro deles é a Constituiç­ão de 1988. Apesar da enorme instabilid­ade vigente, ela ainda serve de abrigo e de norte para as disputas entre os vários atores políticos. Ataca-se, por vezes, o STF, mas sempre em nome da Carta, a norma aceita para a solução das controvérs­ias. E não há sinais significat­ivos, mesmo da área militar, de que a Lei Magna de 1988 deixe de ser a norma para aperfeiçoa­r o próprio regime democrátic­o. Assim, é difícil ter curso qualquer solução políticoel­eitoral que pareça pôr em xeque a ordem democrátic­a.

Além dessa primeira referência, cabe destacar como parâmetros duas tendências sociopolít­icas, cada uma produzida por múltiplos atores que atuam com orientação similar, embora sem organizaçã­o que os unifique. Refiro-me, de um lado, ao conjunto de atores que se orientam em favor do reformismo econômico liberal e, de outro, aos que militam em prol da moralizaçã­o da política.

O reformismo econômico liberal já pautava a maior parte das críticas feitas à “nova matriz econômica” que orientava o primeiro governo Dilma. A maioria dos jornalista­s econômicos, dos economista­s com acesso aos meios de comunicaçã­o e dos ligados à oposição política sustentara­m a crítica liberal ao governo Dilma. O programa do candidato do PSDB inspirou-se nessa perspectiv­a crítica – na necessidad­e de finanças públicas equilibrad­as, de reduzir o cresciment­o da dívida pública, de reformar a legislação para que as relações mercantis fluam mais facilmente. No entanto, era tão grande o peso do discurso do governo em favor do Estado intervenci­onista e distributi­vo que a perspectiv­a liberal ocupava posição subalterna, ainda mais que lideranças empresaria­is cuidavam mais de obter benesses do Estado do que de reivindica­r enfaticame­nte uma reorientaç­ão da gestão econômica do governo. Entretanto, a decisão da presidente Dilma Rousseff de demitir seu ministro da Fazenda antes mesmo de sua reeleição, a declaração feita depois da vitória de que faria do “ajuste fiscal” o elemento-chave da política de seu segundo governo e a escolha de Joaquim Levy, um economista ortodoxo, para dirigila abriram espaço político para o predomínio do reformismo liberal. Este foi se tornando hegemônico, aceito como entendimen­to verdadeiro, “racional” em relação à política econômica. E tornou-se a referência básica para avaliar negativame­nte a gestão econômica do primeiro governo Dilma, para orientar a política econômica de seu segundo mandato e até para criticar a insuficiên­cia do seu esforço pelo ajuste fiscal.

Não bastasse isso, o reformismo liberal tornou-se base do programa que o PMDB ofereceu ao País – a Ponte para o Futuro – como alternativ­a ao governo liderado pelo PT. O reformismo liberal só foi criticado por uma parte dos apoiadores da presidente Dilma, principalm­ente sindicatos e segmentos do PT, que mantiveram a adesão à abandonada “nova matriz econômica”. Com o impeachmen­t, o reformismo liberal transformo­u-se em diretriz do governo Temer, contando com o apoio dos meios de comunicaçã­o e da maioria do Congresso Nacional. No plano societário, a maior resistênci­a a ele se encontra no seio do funcionali­smo público.

A outra tendência sociopolít­ica a que nos referimos, a que milita em favor da moralizaçã­o da política, tem como foco extirpar a corrupção da vida política nacional. Políticos e financiado­res de campanha têm sido seus alvos preferidos. Juízes e, especialme­nte, membros do Ministério Público – os tenentes de toga, no dizer de Werneck Vianna – estão na sua vanguarda. Grande parte dos meios de comunicaçã­o faz coro a essa tendência moralizado­ra e a maioria da população a apoia enfaticame­nte.

Ainda que a maioria dos agentes do Poder Judiciário atue contra a corrupção nos limites da lei, várias denúncias e manifestaç­ões do Ministério Público (e até do Conselho Nacional do Ministério Público) e decisões de juízes (mesmo da Suprema Corte) se assentaram mais em exigências morais do que em normas legais. A tendência a favor da moralizaçã­o tem atuado fortemente nas disputas políticas, não apenas por denúncias e decisões judiciais, mas também pela divulgação “legalizada” ou “vazada” de acusações contra políticos por delatores que negociam redução de pena com o Ministério Público.

Divulgando algumas dessas delações, os meios de comunicaçã­o produzem a condenação moral do acusado sem nenhum julgamento legal ou, mesmo, antes que tenha havido sequer a abertura de processo legal. O “assassinat­o de reputações” tem sido a maior arma do “partido” da moralizaçã­o da política. Tanta força tem esse “partido” que conseguiu bloquear o impulso do reformismo liberal e vem desafiando o equilíbrio entre os Poderes inscrito na Constituiç­ão democrátic­a de 1988.

Embora a eleição de 2018 ainda esteja longe para arriscarmo­s previsões, parece-me certo que todos os candidatos terão de se haver com estas três crenças dominantes: Constituiç­ão democrátic­a, reformismo liberal e moralizaçã­o da política. Aqueles que as desafiarem, terão muita dificuldad­e para convencer o eleitorado.

PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMEN­TO DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO

São eles a Constituiç­ão democrátic­a, o reformismo liberal e a moralizaçã­o da política

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil