O Estado de S. Paulo

Um juiz não escolhe seus réus, e réus não escolhem seus juízes

- Rafael Mafei Rabelo Queiroz ✽ É PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP

OSupremo Tribunal Federal (STF) caminha para restringir a interpreta­ção das regras constituci­onais de prerrogati­va de foro. Um juiz não escolhe seus réus, e réus não escolhem seus juízes. Competênci­as jurisdicio­nais devem vir fixadas por critérios previament­e estabeleci­dos nas leis.

Como regra, processos começam em instâncias inferiores e são distribuíd­os por matéria e local. Sobem aos tribunais por via recursal. Exceções a essa lógica devem ser interpreta­das restritiva­mente. Ampliadas em demasia, ferem o ideal republican­o de igualdade de todos perante a lei.

O foro inicial em instâncias superiores faz sentido como proteção de instituiçõ­es, não de pessoas – essas são protegidas por garantias processuai­s, que devem ser iguais para todos.

A Constituiç­ão deveria ter guardado o foro por prerrogati­va de função para autoridade­s cuja simples sujeição a um processo implicasse abalo sério às instituiçõ­es. Nossos constituin­tes, porém, o distribuír­am fartamente, criando verdadeiro privilégio para dezenas de milhares de ocupantes de cargos e funções públicas.

Confirmand­o-se a restrição ao alcance do instituto, em favor da qual já há maioria na Corte, o STF fará o que está a seu alcance, por interpreta­ção conforme ao princípio republican­o. A farra diminuirá, mas nem por isso acabará por completo.

Em primeiro lugar, porque o próprio sistema de Justiça é pródigo em quebrar a isonomia de foro por outros meios, reconhecen­do, por exemplo, conexões processuai­s frouxament­e fundamenta­das – lembremos do mensalão (AP 470) que arrastou mais de 30 réus sem prerrogati­va de foro ao STF por uma decisão mal explicada ao fim de sua fase de inquérito. O próprio Tribunal parece reconhecer o erro daquela escolha, e desde então tem evitado estender sua competênci­a por conexão.

A figura onipresent­e da “organizaçã­o criminosa”, guarda-chuva de muitas narrativas acusatória­s, também contribui para enredos que reúnem em instâncias superiores réus que mereciam estar separados. Em um universo de práticas espúrias de financiame­nto de campanha que unem o mundo político ao mundo da criminalid­ade empresaria­l, muitos dos acusados de liderar ou integrar essas organizaçõ­es são autoridade­s com prerrogati­vas de foro.

Em segundo lugar, vale lembrar que o Poder Legislativ­o também guarda cartas na manga. O presidente Michel Temer, que tanto dá ao Congresso Nacional, e que dele tanto recebe, será diretament­e beneficiad­o por eventual emenda constituci­onal que dê privilégio de foro a ex-presidente­s. Também o seriam a presidente cassada Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Fala-se que uma tal emenda contemplar­ia ainda os ex-presidente­s da Câmara e do Senado: José Sarney, Renan Calheiros, Eduardo Cunha e companhia. Sabe-se lá se esse não será o melhor presente de fim de ano da classe política para si própria.

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