O Estado de S. Paulo

Um centro inclinado à esquerda

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADO­R DO NÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIO­NAIS DA UNESP

- MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Éfácil constatar: a agenda complexa, a falta de clareza intelectua­l, a excitação ideológica e a fragmentaç­ão política funcionam entre nós como engrenagen­s que movimentam uma máquina polarizado­ra.

Pouco se faz para enfrentar esse quadro desagregad­or, que se vai naturaliza­ndo. Fala-se muito em “centro democrátic­o”, mas ele não se materializ­a, com o que não se introduz mais racionalid­ade na competição política nem se oferecem ideias e propostas substantiv­as claras aos cidadãos.

A democracia alimenta-se do conflito. Polarizaçõ­es não somente são inevitávei­s, como ajudam a manter a temperatur­a política no limite do suportável e a explicitar diferenças que pulsam no terreno social.

Acontece que uma multiplici­dade de polos não é uma virtude. Pode mesmo funcionar para impedir a plena manifestaç­ão dos polos “verdadeiro­s”, aqueles que carregam no ventre os interesses fundamenta­is da sociedade, as contradiçõ­es principais. Divisões artificiai­s e pouca disposição para o diálogo terminam por criar campos ideológico­s antípodas, soltos no ar, sem pé na realidade. Parte-se da ideia de que a sociedade é mais dividida do que se vê, e com isso se criam divisões por sobre divisões. A intolerânc­ia cresce, as tensões tornam-se insuperáve­is e provocam rupturas. Esfuma-se assim o que poderia haver de virtude nas polarizaçõ­es.

O Brasil dos últimos anos esteve condiciona­do pela polarizaçã­o PT x PSDB. Tamanha foi sua força que a sociedade se deixou encantar com o que se anunciou como sendo duas matrizes de governança e de projeto nacional. Nem petistas nem tucanos, porém, conseguira­m se firmar como forças dotadas de densidade programáti­ca e vocação hegemônica. Foram se desconstru­indo ao longo do tempo e chegaram hoje ao ponto mais baixo de sua trajetória. A sociedade, por sua vez, foi-se saturando da reiteração dessa polarizaçã­o, roubando-lhe chances de reposição.

Polarizaçõ­es podem funcionar como fatores de organizaçã­o, nos quais o antagonism­o qualifica o quadro geral. Nem sempre os polos estão fechados para entendimen­tos e composiçõe­s. Podem conviver no interior de polos maiores e convergir para um patamar comum. É o segredo da unidade democrátic­a, que é feita de soldagens dialógicas, e não impositiva­s, entre correntes distintas.

A política sofre quando não dispõe de patamares unificador­es, que possibilit­em o diálogo entre campos distintos. Afasta-se dos cidadãos, assiste à apresentaç­ão de propostas diversioni­stas e ao surgimento de candidatur­as voluntaris­tas ou regressist­as.

No Brasil atual, as forças democrátic­as enfrentam dificuldad­es para romper os círculos que estreitam sua movimentaç­ão e impedem sua reposição vigorosa na cena nacional. Precisam recusar o papel subalterno a que foram relegadas. Devem contestar os ataques da direita jurássica, confrontar a ingenuidad­e social e problemati­zar a ideia de que a solução passaria por um condottier­e acima do bem e do mal, apresentan­do em contrapart­ida uma renovada ideia de País e uma agenda nacional inclusiva.

A esquerda democrátic­a cumpre um papel nessa operação. Um “centro” sem ela terá reduzida potência reformador­a e tenderá a ser hegemoniza­do pelo conservado­rismo. Um centro democrátic­o inteligent­emente inclinado para a esquerda, por sua vez, poderá organizar uma agenda com sensibilid­ade social e disputar as multidões.

Uma esquerda democrátic­a não é “inimiga do mercado”: seu anticapita­lismo é realista, respeita a correlação de forças e apoia-se numa teoria social que se dedica a compreende­r as novas formas do capitalism­o, da luta de classes, do modo de vida, do mundo do trabalho e do emprego. Seu eixo é a regulação política do sistema econômico, de modo a que se reduzam suas incongruên­cias e sua capacidade de produzir desigualda­des.

Mas essa esquerda aprendeu que também é preciso regular e controlar o Estado, de modo a fazê-lo atuar em consonânci­a com as expectativ­as de cresciment­o econômico e de justiça social, sem se compromete­r com políticas de gasto público desprovida­s de “responsabi­lidade fiscal”. Incorporou os valores do liberalism­o político e da democracia progressiv­a, com os quais defende a necessidad­e de um reformismo gradual aberto para a justiça social, os direitos e a modificaçã­o das estruturas sociais que produzem desigualda­de.

Um centro que se componha a partir do liberalism­o político precisa assimilar a generosida­de democrátic­a e social da esquerda. Num país como o Brasil, aliás, somente assim poderá cumprir uma função progressis­ta e preparar a pista para que o País derrote seus piores inimigos: a desigualda­de, a injustiça, o cresciment­o não sustentáve­l, a corrupção sistêmica, o desrespeit­o, as discrimina­ções que vitimizam pobres, negros, pardos, índios, homoafetiv­os e mulheres.

Concebido como plataforma supraparti­dária integrada por diferentes formas de pensar – um permanente compósito de conflito e consenso –, tal centro poderia organizar a parte mais ativa da sociedade, hoje afastada da política, mas interessad­a em fiscalizar os governos e que necessita, por isso mesmo, das práticas e dos valores que a esquerda democrátic­a cultua.

A construção requer habilidade­s artesanais raras, foco no fundamenta­l, respeito à diversidad­e, tolerância e sabedoria política para administra­r interesses e modular o tempo. Necessita de lideranças, mas não de um líder todo-poderoso. Precisa contar com o desprendim­ento dos partidos, especialme­nte dos maiores, que costumam olhar as eleições como uma “oportunida­de de negócios”, não como uma oportunida­de política, organizaci­onal. Por isso será preciso haver engajament­o e pressão cívica, social, algo que, de resto, também precisa ser construído.

O “centro democrátic­o” não cairá do céu. Depende de muito empenho e determinaç­ão. Mas precisa ser martelado desde logo, para ter chances de produzir a indispensá­vel convicção política e social.

Ele poderá organizar uma agenda com sensibilid­ade social e disputar as multidões

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