O Estado de S. Paulo

Mercado de escravos

- GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

Uma simples foto pode trazer à luz um drama que o mundo ignora ou finge ignorar. Isso aconteceu em 2015, com a foto de um pequeno migrante morto numa praia da Turquia. Muitos anos antes, o mundo ficara estarrecid­o com a foto de uma menina queimada por napalm, correndo nua e desesperad­a por uma estrada do Vietnã. Em ambos, as fotos produziram choques de realidade mais eficazes que 20 anos de conversa fiada na ONU.

Agora, uma reportagem da rede de TV CNN nos informa que, em pleno ano da graça (ou da desgraça?) de 2017, existem na Líbia mercados de escravos nos quais homens, mulheres e crianças são vendidos em público.

Esse comércio vergonhoso só foi abolido no Brasil em outubro de 1888. Mas a lentidão foi ainda maior na África: a Mauritânia só acabou (oficialmen­te) com a infâmia em 1981. Mauritânia e Líbia são países situados em parte no Saara, o mais vasto deserto quente do mundo, um território infinito de areia e pedras que separa e liga o Magreb (Marrocos, Tunísia, Argélia, Líbia) e a África negra.

Como a foto da garotinha vítima do napalm nos confins do Vietnã, as imagens da CNN arrancaram de uma longa sesta essa gente solene que, na ONU, nas capitais, nas chancelari­as, tem em mãos o destino de mundo. O francês Emmanuel Macron trovejou sua indignação. O secretário-geral da ONU, horrorizad­o, fustigou a União Europeia e a União Africana.

A cólera aquece a alma. Certamente existe no fundo desses corações entorpecid­os uma fibra moral ainda intacta. O estranho é que eles não se tenham indignado antes, pois é um segredo de polichinel­o que a Líbia voltou a ter um comércio de escravos desde que esse país infeliz foi quebrado em três por Nicolas Sarkozy.

Admitindo-se que os ocidentais nada soubessem antes da reportagem da CNN, os diplomatas europeus e americanos, vindos de escolas de elite, no mínimo não podiam ignorar que a escravidão nos países do Magreb foi durante séculos uma indústria pujante.

Aprendemos na escola a história do tráfico de negros entre a África e o continente americano. Mas ignoramos, proposital­mente ou não, a outra grande rota da escravidão, a que abastece, com o passo lento dos dromedário­s, outros mercados de farrapos humanos. Por essa rota são vendidas muito menos pessoas que pelo comércio triangular entre a Europa, a África e a América. São milhares de homens, mulheres e crianças a cada ano. Mas, como o tráfico através do Saara existe há muito mais tempo, o resultado é sinistro.

Historiado­res calculam que 10 milhões de seres humanos africanos foram arrancados de sua terra natal, de sua tribo, de sua família, de sua dignidade, entre a Antiguidad­e romana e o século 19. Note-se: assim como muitos escravos morriam nos navios negreiros na viagem entre a África e a América, o número de mortes nas caravanas transaaria­nas era assustador: 20% dos escravizad­os morriam.

Quem eram as vítimas dessas caravanas da morte? Difícil dizer, pois a composição dos comboios decorria da geopolític­a de cada período da história. A grande maioria era de negros tirados das regiões subsaarian­as e vendidos no Magreb.

Moral: se os políticos e seus embaixador­es conhecesse­m um pouco de história, há muito deveriam ter voltado a atenção para esse tráfico. Mas eles parecem ignorar a história, um pouco como as estrelas continuam a brilhar a nossos olhos muito depois de mortas.

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