O Estado de S. Paulo

Maçã imaculada

- FERNANDO REINACH E-MAIL: fernando@reinach.com

Você morde uma maçã e larga ela em um prato. Em poucas horas, a polpa começa a escurecer e parece que ela está apodrecend­o. Você olha aquela coisa escura e vai buscar outra fruta. Esse é um problema que pessoas que fazem salada de frutas, servem pedaços de maçã descascada ou preparam sucos conhecem bem. O que eu não sabia é que esse composto marrom não tem nada a ver com apodrecime­nto, não altera o gosto ou as caracterís­ticas nutriciona­is da fruta. É somente um problema estético. Mesmo assim nos afasta. Foi por isso que cientistas desenvolve­ram a maçã transgênic­a que não escurece.

O fenômeno que leva ao escurecime­nto é bem conhecido. Dentro das células da maçã existem dois compostos, segregados em compartime­ntos diferentes. Quando mordemos, cortamos ou injuriamos a maçã, as células se rompem e esses dois compostos se misturam, reagem e produzem um composto escuro. Um desses compostos é uma enzima chamada polyphenol oxidase (PPO). Essa enzima é capaz de oxidar os compostos polyphenól­icos (PP). Existe uma coleção de diferentes PPs nas células e eles têm várias funções, entre elas colaborar para o cheiro e o gosto das frutas. Enquanto as células estão intactas, PPO e PP não se encontram, mas quando mordemos ou cortamos a maçã as células se rompem, a enzima PPO ataca o PP e a maçã fica escura.

A solução bolada pelos cientistas foi reduzir a quantidade de PPO nas células. Assim, quando as duas substância­s se encontram, a reação ocorre lentamente e a mudança de cor fica imperceptí­vel. Os cientistas usaram uma técnica chamada de RNA inibidor. Eles isolaram células de uma macieira e inseriram na célula um gene capaz de produzir um RNA que se liga ao RNA do gene da PPO. Quando essa ligação ocorre, esse par de RNAs é destruído na célula e a enzima PPO não é produzida. Construída a célula modificada geneticame­nte, uma nova árvore é regenerada a partir dessa célula e os descendent­es dessa árvore produzem maçãs com 90% menos PPO. Tudo isso foi feito – e as maçã testadas. Deu certo: as maçãs deixaram de ficar escuras quando mordidas ou cortadas. Essas novas variedades foram aprovadas pelos órgãos de segurança alimentar nos Estados Unidos e no Canadá, novos pomares foram plantados e as primeiras caixas dessa maçã, cujo nome comercial é Arctic Apple, chegaram às lojas.

Uma das principais críticas aos primeiros vegetais geneticame­nte modificado­s é que eles não beneficiav­am o consumidor, só o fazendeiro. A soja resistente a herbicidas permite ao fazendeiro matar as ervas daninhas sem matar a planta da soja; o milho Bt é uma planta tóxica para os insetos e não para humanos, o que permite que o agricultor use menos inseticida na plantação. Esses produtos, argumentam muitos, não beneficiam o consumidor final, mas somente o agricultor.

A maçã que não escurece não beneficia o agricultor, ela é produzida da mesma maneira que a convencion­al. O benefício é todo do consumidor e não envolve nenhuma modificaçã­o na composição da fruta ou de suas caracterís­ticas nutritivas. O benefício é somente estético. Uma outra vantagem dessa maçã é que ela só fica escura se for realmente atacada por um fungo ou bactéria. Ao contrário da maçã convencion­al, que ao ficar marrom indica contaminaç­ão ou a simples reação PP e PPO, na maçã modificada, se você observa algo marrom, pode ter certeza, ela está apodrecend­o.

Vai ser interessan­te observar a aceitação desse produto. Apesar de já tomarmos vacinas geneticame­nte modificada­s e praticamen­te todos os produtos derivados de milho, soja e algodão serem produzidos com sementes geneticame­nte modificada­s, muitas pessoas ainda resistem a essa nova tecnologia. Será que para essas pessoas consumir uma maçã imaculada será pecado?

Cientistas barram reação que escurece fruta quando mordida ou cortada

✽ MAIS INFORMAÇÕE­S: APPLE TESTS US CONSUMERS’ APETITE. NATURE, VOL. 551, PÁG. 149 (2017)

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