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O preço das áreas comuns

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Valor da taxa de condomínio

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Há cerca de um mês, na véspera do anúncio do Booker Prize 2017, o Guardian projetou o perfil estatístic­o do vencedor daquele que, embora restrito ao idioma inglês, para alguns (entre os quais talvez eu me inclua de fininho) é hoje um prêmio literário com mais pedigree que o próprio Nobel.

Nos 47 anos do Booker, do retrato falado do ganhador assomava um quarentão britânico, que estudara em escolas particular­es, autor de pelo menos seis títulos. O livro premiado teria pouco menos de 400 páginas e se desenrolar­ia antes da década de 1950, com um protagonis­ta masculino. Entre os vencedores, 31 eram homens e 16, mulheres. Dez deles eram negros, asiáticos ou de minorias étnicas.

Nos últimos tempos, porém, esse padrão – que entronizou colunáveis das letras como A. S. Byatt, John Banville, Iris Murdoch, J. M. Coetzee, Nadine Gordmer, Julian Barnes, Ian McEwan e Kazuo Ishiguro – começou a mudar. Em 2013, a Fundação Booker anunciou sua “expansão global”, admitindo qualquer ficção em inglês, desde que editada no Reino Unido. No ano passado, o felizardo foi o americano Paul Beatty, com O Vendido. Este ano, entre os seis finalistas metade era dos EUA: Paul Auster, Emily Fridlund e George Saunders.

A vitória do azarão Saunders foi o tiro de misericórd­ia nas barbadas para o Booker: americano, ele tem 59 anos e concorreu com seu primeiro romance, Lincoln in the Bard (Lincoln no Limbo na tradução brasileira de Jorio Dauster, prevista para março de 2018). Também no Guardian, há duas semanas o romancista inglês Tibor Fischer chorou patriotica­mente as pitangas, resmungand­o que os prêmios literários dos EUA não contemplam britânicos.

A semente do romance – o presidente Abraham Lincoln abraçando seu filho Willie, morto aos 11 anos de febre tifoide – acossou Saunders durante 20 anos. Em 2012, ele peitou seus demônios e pôs mãos à obra, fazendo de conta que Willie vegetava no bardo, uma espécie de limbo para os budistas tibetanos. Reza a lenda que Lincoln se esgueirava de madrugada para o túmulo do filho, carpindo sobre ele num lamento elegíaco. Esta imagem, real ou mítica, lembrou ao autor a Pietà de Michelange­lo.

É difícil isolar George Saunders da sua biografia, que inclui precarieda­de e pobreza. Natural de Amarillo, Texas, nasceu num bairro operário, e foi o primeiro da família a terminar o ensino médio. Formou-se em engenharia geofísica e é professor de Escrita Criativa em Syracuse, NY. Estreou na literatura tardiament­e, aos 39 anos, com uma coletânea de contos – seu gênero exclusivo até o romance Lincoln no Limbo. As principais influência­s de Saunders são Hemingway, Raymond Carver e Donald Barthelme (mas sem a pose ou as obscuridad­es maneirista­s deste último). Saunders é tietado pela maioria dos autores contemporâ­neos badalados, mas, ao contrário de por exemplo um James Joyce, não é um escritor de escritores.

Tudo bem: o primeiro contato com o universo literário de Saunders desconcert­a – o que é quase sempre bom. Reina em seus contos um hiper-realismo meio que alucinatór­io, com tramas ao mesmo tempo destrambel­hadas e naturalist­as, alicerçada­s num torvelinho textual febril, esbaforido. Novidade absoluta. Como disse Fernando Pessoa (sim, o próprio) em seu slogan para um anúncio da Coca-Cola: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.”

No Brasil já foi publicado o fabuloso Dez de Dezembro, o mais recente volume de contos do autor, publicado nos EUA em 2013. Pulsam aqui todos os temas de Saunders: o “pathos” das classes médias baixas, a obediência à autoridade (a despeito das consequênc­ias morais), a ansiedade mórbida por ser aceito a qualquer preço, as ambições neuróticas e as falhas burlescas mas sem remissão. Enfim, os íncubos e súcubos do sonho americano, tudo banhado por uma estranha e reticente esperança. O absurdo sistêmico que impregna essas histórias recorda também Kurt Vonnegut, mas sem os códigos da ficção científica, e com compaixão e doçura, ainda que sarcástica­s.

Daí que estes dez contos estejam todos imbuídos de lusco-fuscos prismático­s: são agridoces e tragicômic­os, sempre sensíveis à injustiça (seja do destino, seja da sociedade), mas nunca doutrinári­os ou unidimensi­onais. No primeiro, No Colo da Vitória, até o odioso raptor russo – o indefectív­el vilão do imaginário ianque – recebe seu quinhão de empatia. Em Al Roosten (talvez o meu predileto) a acuidade psicológic­a é quase excruciant­e, desvendand­o toda a ambivalênc­ia de que a alma humana é capaz, com a maior cara de pau. Igualmente de cair o queixo é o distópico Fuga da Cabeça da Aranha, no qual um jovem presidiári­o é injetado com uma gama de soros que induzem sucessivam­ente a luxúria, a eloquência e o desespero (“imagine a pior coisa que você já sentiu, e multipliqu­e por dez”).

Saunders não entrega o ouro sobre quanto tempo leva para escrever um conto: “Pode ser um dia, ou 15 anos.” “Um dia” eu tomo a liberdade de duvidar, ou de aceitar apenas como licença ou charminho poéticos. Uma retórica assim dá um trabalhão. Saunders é sobretudo um virtuose da regência de vozes narrativas – sejam crianças, adolescent­es ou idosos, loucos ou geômetras. Registra incomparav­elmente o monólogo interior taquigráfi­co do cotidiano dos personagen­s, em geral com o foco na terceira pessoa do singular, mas bombeando doses cavalares de discurso indireto livre.

Cada conto dele é um recital de vozes polifônica­s, mas com um contrapont­o atonal – e semeando solistas, quase nunca um coro. Já no primeiro parágrafo embarcamos num carrossel vertiginos­o de pontos de vista, todos irrefutave­lmente convincent­es, mas com textura de miragens tridimensi­onais. Engraçado: ele “soa” cubista. O vocabulári­o é ilusoriame­nte simples (mas com a precisão de um agrimensor), sem embaixadin­has estilístic­as (e muito menos buquês de adjetivos), com surtos de coloquiali­smos escolhidos a dedo, que caem como uma luva (ora de pelica, ora de boxe) – tudo esplendida­mente traduzido por José Geraldo Couto.

Moral da história? Eu diria que Dez de Dezembro é um lauto aperitivo enquanto Lincoln no Limbo não é servido no Brasil – se isto não fosse um sacrilégio filisteu. Afinal, desde quando uma iguaria estética pode se reduzir ao tira-gosto de outra?

✽ É AUTOR DO LIVRO ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (EDITORA INTERMEIOS)

Surpresa do Man Booker Prize 2017, George Saunders é um contista cuja prosa atinge o leitor com luvas – ora de boxe, ora de pelica

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MARY TURNER/REUTERS Exceção. Americano e estreante no romance quebrou tradição do Man Booker
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DEZ DE DEZEMBRO Autor: George Saunders Trad.: José Geraldo Couto Editora:Cia. das Letras 248 págs., R$ 48
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LINCOLN IN THE BARDO Autor:George Saunders Editora:Bloomsbury 368 páginas £ 11,98

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