O Estado de S. Paulo

Roberto DaMatta

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Proclamamo­s a República em 1889, mas falta muito para sermos republican­os.

Os jornais estampam a última “novidade” deste Brasil feito por nós, mas que tende a ser visto como um ilustre desconheci­do. Pois somos muito mais predispost­os a nos ver como criadores do que como criaturas. Acreditamo­s criar relações que produzem grupos, os quais, por sua vez, inventam regras mas – eis a novidade das “crises’ – descobrimo­s como temos que prestar contas do que escolhemos e inventamos.

No momento, a grande novidade é descobrir que, sem fazer valer a lei a torto e a direito (sem trocadilho), o Brasil vai às brecas. Nosso problema corrente e premente é como desfazer os resíduos de nobreza embutidos em toda parte, mas imoral e desconfort­avelmente visíveis nos cargos públicos de alto coturno.

Você não queria democracia? – agora chia... Nós nos perguntáva­mos quando veio o golpe militar para – diziam – democratiz­ar o Brasil e vimos o passageiro se transforma­r em permanente, o democrátic­o, em ditadura e o governo provisório, num regime.

Proclamamo­s uma República em 1889 somente para descobrir em 2017 que falta muito para sermos republican­os. Como igualar perante a lei se os porquinhos são mais iguais do que os cachorros? E se os leões eleitos para salvar o povo têm imunidade. Eis uma sobrevivên­cia do passado imperial no presente republican­o. De fato, quanto mais lutamos pela igualdade, mais criamos iniquidade­s. Ambiguidad­es ocorrem em toda parte, mas não viram valores. Os americanos, por exemplo, queriam evitar demagogos e, com suas eleições em dois turnos, elegeram Trump. Os alemães – cuja língua só os mais inteligent­es conseguem falar, conforme dizia um dos meus professore­s –, inventaram o nazismo exatamente por serem compulsiva­mente corretos.

A ironia como um hóspede não convidado surge como um “inesperado” na mesma proporção de nossas intenções. “É a obra do artista, como escreveu Nietzsche, que inventa o homem que a criou. ‘Os Grandes Homens’, como eles são depois venerados, são o resultado subsequent­e de pequenas peças de ficção”.

O coletivo retorna ao jogo com a mesma potência com a qual ele foi ignorado. Uma matriz aristocrát­ica – baseada em sucessão hereditári­a, programada para proteger parentes e amigos; uma sociedade na qual os “brancos” tinham como destino “não fazer nada” a não ser legislar, decretar e, acima de tudo, mandar enquanto os “negros-escravos” os complement­avam praticando essa coisa terrível que é trabalhar – enfrenta hoje uma inexorável pressão igualitári­a.

Um sistema que teve como ideal afastar o trabalho das suas camadas dominantes resultou nessa novidade que hoje estamos enfrentand­o: trabalho dobrado. Trabalho adornado pela vergonha de ver a olho nu e sem convicções ideológica­s como o viés aristocrát­ico com seus pendurical­hos estatais canibalizo­u a horizontal­idade das posições políticas. A polaridade esquerda/direita foi engolida pela gradação tradiciona­l do alto e do baixo, do pobre e do rico, por meio do aviltament­o das políticas públicas transforma­das em instrument­os de enriquecim­ento pessoal. A novidade é ver quadrilhas de “governante­s” de um lado e do outro lotando as cadeias públicas.

E, dentro delas, eis a negação da negação, reproduzin­do regalias. De fato, como impedir que uma gangue de governante­s e ministros criminosos coma do bom e do melhor? Sobretudo quando vivemos uma epidemia de culinária cujos "chefs" têm sotaque francês?

O resultado direto, espera-se, será a melhoria das cadeias medievais agora preparadas para esses prisioneir­os enobrecido­s – esses vis batedores de carteira de ideais democrátic­os. Assim, em conformida­de com o nosso surrealism­o jurídico-político, tais prisões deveriam ser privatizad­as e transforma­das em “prisões-resort-especiais” destinadas aos que têm o direito antidemocr­ático a “prisão especial” – essa brutal contradiçã­o em termos. Nelas, os ladrões dos nossos sonhos de igualdade, honra, honestidad­e, trabalho e solidaried­ade coletiva – teriam a sua doce e legalíssim­a punição.

A norma crítica do republican­ismo – o axioma da democracia é a igualdade perante a lei. Nele, o crime cometido, e não a prerrogati­va do cargo ou a pessoa que o ocupa, é o fiel do julgamento. Se certos cargos neutraliza­m a igualdade, voltamos à nobreza que, como o “você sabe com quem está falando?”, jamais abandonamo­s inteiramen­te. Como, eis a questão, neutraliza­r o princípio em função de papéis sociais e pessoas. A própria discussão é a prova mais clara do nosso horror à igualdade.

A novidade é ver quadrilhas de ‘governante­s’ de um lado e do outro lotando as cadeias públicas

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