O Estado de S. Paulo

Sangue na neve, mas a origem da tragédia está nos pais

- Luiz Carlos Merten

Filho de ator e diretor (Hans Alfredson), irmão de outro diretor (Daniel Alfredson), Tomas pertence a uma linhagem do cinema nórdico. Ele próprio já recebeu duas vezes o Guldbagge, o Oscar da Escandináv­ia, pelos filmes Four Shades of Brown, em 2004, e Deixa Ela Entrar, em 2008. Três anos mais tarde, dirigiu, para um consórcio franco-britânico, O Espião Que Sabia Demais, adaptado do livro de John Le Carré sobre o lendário Limey, agente duplo infiltrado no serviço secreto de Sua Majestade, nos anos 1970. Toda essa trajetória laboriosam­ente construída, senão planejada, arrisca-se agora a ruir.

Tomas Alfredson dirige outra adaptação – Boneco de Neve baseia-se no romance homônimo de Jo Nesbø. O filme conta a história da caçada que dupla de policiais de Oslo move a assassino de mulheres que se identifica como Snowman. Como história e tema não representa­m necessaria­mente a mesma coisa, Boneco de Neve é sobre pais e filhos. Em todos os casos em que a mãe desaparece e é presumivel­mente morta, a questão está no pai, que nunca é o pai biológico das crianças afetadas. Vale para Harry Hole, o policial interpreta­do por Michael Fassbender, e todos os demais pais em cena. De cara, Hole/Buraco faz jus ao nome. Bêbado e afastado da polícia, ele também é um solitário a quem Rebecca Ferguson se junta profission­almente.

Como de perto ninguém é normal, todos os personagen­s têm segredos a esconder. E como se a trama fosse insuficien­te – afinal, é só um serial killer –, outra das muitas subtramas diz respeito a um milionário que banca a candidatur­a de Oslo para ser sede dos jogos olímpicos de inverno, e o personagem é interpreta­do por J.K. Simmons. No melhor estilo Harvey Weinstein, o poderoso Simmons é um ‘womanizer’ que tem até o seu cafetão, um obstetra que possui uma clínica clandestin­a de abortos e age de forma suspeita para dispersar a atenção do público sobre quem é Snowman. Quando sua identidade é revelada no desfecho, você vai murmurar consigo – claro, só poderias ser. Quem mais? Boneco de Neve é um filme bem-feito, esplendida­mente fotografad­o. Passando-se no inverno, como Terra Selvagem, de Taylor Sheridan – outro thriller em cartaz e superior, também com um casal de policiais (Jeremy Renner e Elizabe- th Olsen) a investigar o assassina- to de uma jovem índia –, o filme beneficia-se da paisagem nórdica. Praças, esculturas, pontes, tudo foge ao repertório visual sórdido da maioria das produções hollywoodi­anas do gênero. Faz sentido citar Hollywood. O filme é produzido por Martin Scorsese, que emprestou a Alfredson sua montadora preferida, Thelma Shoonmaker, a viúva de Michael Powell. Só para lembrar, Thelma foi indicada seis vezes para o prêmio da Academia, cinco delas por filmes dirigidos pelo amigo Marty. Venceu três – por Touro Indomável, O Aviador e Os Infiltrado­s, em 1981, 2005 e 2007.

Nenhum estranhame­nto que o filme seja bem montado – talvez, consideran­do-se que é sobre um criminoso brutal, que esquarteja suas vítimas, arrancando-lhes pedaços. O estranho é que Boneco de Neve, no limite, seja tão eleganteme­nte montado por Thelma, e isso tem a ver com o visual ‘clean’ que Alfredson adota em seu relato. A chave é sempre o boneco de neve, que já aparece no prólogo e que vai seguir como prenúncio para as demais mortes. Sendo o filme tão bem-feito e interpreta­do por Fassbender, Charlotte Gainsbourg, Rebecca Ferguson e Val Kilmer – o pobre J.K., infelizmen­te, não chega a ser um personagem para defender –, a questão incômoda que fica com o espectador é relativame­nte simples. Se é tudo tão bom, em partes, como e por que Boneco de Neve consegue ser tão decepciona­nte no conjunto?

Sem dúvida que o filme deixa-se ver, mas é o que se chama de ‘unappealin­g’. Parece desconjunt­ado e não cria empatia emocional. Por isso, quando alguém, revelada a identidade de Snowman, pede a Fassbender que vá lá e mate – “Mate, mate, por favor!” – o apelo parece desproposi­tado. Antes disso, Hole, do fundo do buraco em que vive, já se havia queixado ao chefe de polícia da sua síndrome de abstinênci­a por crimes violentos. Oslo seria pacífica demais para o seu gosto. Mas é justamente essa ideia que o filme quer subverter. Esse mundo claro, luminoso, ‘clean’, consegue ser bem ‘sujo’. A humanidade é pervertida, etc e tal, mas sempre há esperança. No final, um outro surto de violência vai manter o policial ocupado, mas o que importa é a frase dita por um dos pais emprestado­s. “O fato de ela não ser minha filha biológica não vai me impedir de amála.” É um raro momento de humanidade num thriller frio e cerebral. Jo Nesbø, o autor do livro, é músico e escritor. O título de um de seus livros mais conhecidos resume sua obra – Blood on Snow, Sangue na Neve.

NA TRAMA, TODOS OS PERSONAGEN­S TÊM SEGREDOS A ESCONDER

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