O Estado de S. Paulo

Avançar num trabalho de arte ou num problema matemático requer uma pausa.

- Milton Hatoum

Éo título do livro póstumo do neurologis­ta britânico Oliver Sacks. Nesses ensaios, escritos com uma linguagem clara e uma erudição generosa, ele recorre à arte, à literatura, à história e à filosofia para analisar aspectos genéticos, anatômicos e fisiológic­os do complexo e misterioso funcioname­nto do cérebro.

Tudo conflui para a compreensã­o do rio da consciênci­a, cujas águas agitadas deságuam no vasto mar da memória. Os temas são tão variados quanto fascinante­s: Darwin e o significad­o das flores, O outro caminho: Freud neurologis­ta, Enganos auditivos , Uma sensação generaliza­da de desordem…

Não menos fascinante­s são os ensaios A falibilida­de da memória, O eu criativo e O rio da consciênci­a. Neles, as análises científica­s sobre memória, esquecimen­to, e as relações entre criativida­de, tempo e (in) consciênci­a são aprofundad­as por reflexões filosófica­s, musicais, literárias.

Ele nos lembra que as pessoas aprimoram suas habilidade­s pela imitação, e só depois encontram sua voz própria. Nesse sentido, a criativida­de, segundo Sacks, requer um longo tempo de preparação e exercício consciente­s, mas também inconscien­tes. Ele menciona dois casos exemplares: a abertura da ópera Rienzi, de Wagner, em que é possível identifica­r as imitações, paráfrases e ecos de vários compositor­es na obra wagneriana; e a peça Uma espécie de Alaska, de Harold Pinter, inspirada em um dos casos clínicos relatados em Tempo de despertar.

Em 1973, Pinter leu o então recém publicado livro de Sacks, mas só oito anos depois o dramaturgo britânico encontrou a primeira imagem e a primeira fala da peça, que “escreveu a si mesma” nas semanas seguintes. Isso acontece com poetas e ficcionist­as, que, por um longo tempo, pensam num poema, conto ou romance e, de repente, são movidos por uma emoção súbita (o instante de alumbramen­to, como dizia Manuel Bandeira), e o texto “escreve a si mesmo”.

O neurologis­ta cita o contraste entre o texto de Harold Pinter e o de outro autor, influencia­do pelo mesmo relato de Tempo de despertar. O texto desse autor (não nomeado) pareceu a Sacks “um plágio ou uma paródia, em vez de uma peça original, pois em alguns trechos copiava sentenças inteiras do meu livro sem ao menos transformá-las”.

Sacks enumera possíveis razões pelas quais aquele autor, ao contrário de Pinter, não conseguiu transforma­r o relato do caso clínico num texto teatral de qualidade.

“Todos nós, em algum grau, fazemos empréstimo­s de terceiros, da cultura à nossa volta. O que está em questão não é ‘emprestar’ ou ‘imitar’, ser ‘derivado’, ser ‘influencia­do’, e sim o que se faz com aquilo que é tomado de empréstimo ou derivado, a profundida­de em que a pessoa assimila, absorve, combina com suas próprias experiênci­as, pensamento­s e sentimento­s, situa em relação a si mesma e expressa, de novo modo, o seu modo particular” (p. 107, trad. Laura Teixeira Motta).

Portanto, não se trata apenas de plágio ou imitação. Os avanços da tecnologia e dos estudos científico­s ajudam a compreende­r o funcioname­nto do cérebro, mas “o fluxo da consciênci­a, em constante mudança”, ainda é, segundo Sacks, um grande mistério. Daí a importânci­a do tempo e do “esquecimen­to”: “um período de incubação que é essencial para permitir que o subconscie­nte assimile e incorpore as influência­s e fontes, que as reorganize e as sintetize em algo pessoal”.

Isso vale igualmente para artistas, cientistas, matemático­s, físicos. Avançar num trabalho de arte ou num problema matemático requer uma pausa, um período de incubação. As atividades científica­s e artísticas não se ajustam à pressa nem devem ceder à pressão do mercado. São atividades que, cada uma a seu modo, pedem paciência, longos períodos de reflexão, noites de insônia, e lances tão inesperado­s quanto iluminador­es do inconscien­te. São esses lances que conformam o “Eu criativo”, belamente analisado por Sacks neste rio da consciênci­a.

Avançar num trabalho de arte ou num problema matemático requer uma pausa

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