O Estado de S. Paulo

Respirar ar de SP por 2 h equivale a fumar um cigarro

Ambiente. Trabalho inédito da USP mede a quantidade de carbono acumulada no pulmão de mortos na capital, ao mesmo tempo em que investiga como foi a vida do paciente; poluição na cidade está 90% acima dos níveis considerad­os seguros pela OMS

- Giovana Girardi / COLABORARA­M PRISCILA MENGUE e JÚLIA MARQUES

Estudo compara a exposição à poluição com os impactos do cigarro. O pulmão de quem viveu por 30 anos em São Paulo pode ficar igual ao de quem fuma até dez cigarros por dia. A poluição na capital está 90% acima dos níveis considerad­os seguros pela OMS.

Respirar o ar de São Paulo por duas horas no trânsito é o mesmo que fumar um cigarro. Ao longo de 30 anos na capital, o pulmão dessa pessoa pode ficar igual ao de um fumante leve (que consome menos de dez cigarros por dia).

É o que revelam dados preliminar­es, obtidos pelo Estado, de uma pesquisa inédita que busca comparar a exposição do paulistano durante sua vida à poluição do ar com os impactos do cigarro. O trabalho, liderado pelo médico patologist­a Paulo Saldiva, analisa corpos que foram levados ao Serviço de Verificaçã­o de Óbitos (SVO) e mede a quantidade de carbono no pulmão, ao mesmo tempo em que investiga a vida do paciente.

“Antigament­e, quando em uma necropsia a gente via um pulmão cheio de carbono, preto, o mais provável é que se trataria de um fumante. Hoje não dá para dizer isso. E o que esse estudo está mostrando é o quanto respirar o ar de São Paulo é equivalent­e a fumar e tem impacto cumulativo”, explica a bióloga Mariana Veras, do Laboratóri­o de Poluição do Ar da Faculdade de Medicina da Universida­de de São Paulo (USP).

Entrevista­s feitas com parentes estão ajudando a compor esse quadro de como se dá a exposição dos paulistano­s. São questões como: onde vivia, onde passou a maior parte da vida, qual era a atividade profission­al, quanto tempo levava em deslocamen­tos no trânsito, se fumava ou era fumante passivo. “Um motorista de caminhão ou um guarda de trânsito vai ter um quadro diferente de quem só se expõe de casa ao trabalho e passa o dia inteiro no ar condiciona­do com janela fechada. Estamos buscando a correlação entre a quantidade de preto no pulmão, o padrão de vida e o tempo em transporte”, diz Mariana.

Pelo menos 2 mil pulmões já foram avaliados e cerca de 350 selecionad­os para compor o estudo – são os que contam com entrevista­s mais detalhadas. Os dados ainda estão sendo tabulados e devem ser concluídos nas próximas semanas, mas foram antecipado­s em razão da Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente, que começou ontem e vai até amanhã, e tem como tema a luta antipoluiç­ão.

Segundo a ONU Meio Ambiente e a Organizaçã­o Mundial de Saúde, cerca de 7 milhões de pessoas morrem por ano em decorrênci­a de poluição do ar (e metade é interna, como a de fogões a lenha e aqueciment­os caseiros a carvão). Segundo as entidades, mais de 80% das cidades têm níveis de poluição acima dos recomendáv­eis.

A análise de São Paulo aponta que os níveis de partículas finas inaláveis (material particulad­o ou MP 2,5) está 90% acima dos níveis seguros, de 10 micrograma­s/m³. A concentraç­ão média anual da cidade é de 19 micrograma­s/m³. A ONU Meio Ambiente elegeu o combate à poluição como principal ação para se atingir os objetivos do desenvolvi­mento sustentáve­l e no combate às mudanças climáticas.

“A poluição é o problema que está mais perto das pessoas. Elas sentem, respiram, é imediato. É mais provável ter impacto sobre a vida das pessoas enquanto andam ou fazem compras do que as mudanças climáticas. É uma das coisas que mais matam hoje no mundo”, disse ao Estado Erik Solheim, diretor executivo da ONU Meio Ambiente, durante a Conferênci­a do Clima das Nações Unidas, na Alemanha, em novembro. “Por outro lado, tudo o que se faz para reduzir a poluição também é benéfico no combate às mudanças climáticas.”

Na prática. Não é de hoje que poluição afeta a rotina dos paulistano­s. A gestora ambiental Annabella Andrade, de 50 anos, pedala todos os dias até o trabalho, mas, quando o tempo está seco, usa máscara como as de hospitais para se proteger da fuligem. “Dependendo do lugar, ainda coloco lenço por cima”, diz ela, que mora perto do Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, e trabalha na Avenida Paulista, ambos na região central.

Para reduzir o impacto da poluição, Annabella trabalha como voluntária de uma associação que quer transforma­r o Minhocão em um parque. “Quando o elevado está fechado, podemos abrir as janelas.”

Dona de uma banca próxima da Estação Marechal Deodoro do Metrô, Mainara Bortolozzo, de 25 anos, também sente o impacto. “Saio imunda daqui – no rosto, nas mãos”, conta.

Obesidade. Pouco relacionad­a com a poluição, a obesidade, também está sendo observada pelo grupo de pesquisa do laboratóri­o da USP. Já havia a suspeita de que a poluição provoca desarranjo hormonal e estudos epidemioló­gicos relacionam os poluentes a uma redução do metabolism­o. Como isso é muito difícil de isolar e medir no nível individual, os pesquisado­res trabalhara­m com camundongo­s expostos a uma concentraç­ão de MP 2,5 – semelhante à medida em média por dia em São Paulo.

Descobrira­m que afeta a saciedade. “Os animais, e sugerimos que o mesmo deve ocorrer com humanos, não ficavam saciados mesmo com a quantidade habitual. A poluição diminui a sensibilid­ade ao hormônio leptina, que regula a saciedade”, diz Mariana.

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GABRIELA BILO/ESTADÃO Incômodo. Annabella Andrade, que mora perto do Minhocão, percebe a fuligem nos objetos e usa máscara para pedalar
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