O Estado de S. Paulo

Vade retro, novidade!

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Deus nos livre dela! A “novidade” em matéria de política e administra­ção pública resulta no que o Brasil se tornou. A revolução, a salvação da pátria está em fazê-la visitar, pela primeira vez na vida, o velho, o certo, o sabido, o testado, o consagrado. A boa e velha democracia, de que nós nunca sentimos nem o cheiro, por exemplo.

A colonizaçã­o apoiada exclusivam­ente no “latifúndio escravocra­ta exportador”, a definição em cima da qual se estruturou tudo o que se pensou sobre o País no último século, é uma redução grosseira e distorcida de uma realidade muito mais rica, complexa e matizada, que tem origem num movimento reacionári­o deliberada­mente arquitetad­o para nos colocar à margem do curso geral da História no exato momento em que “o sonho” começou a desmoronar lá atrás.

Comprada e cristaliza­da pelo marxismo de almanaque dos intelectua­is século 20 que ainda controlam nossas escolas, foi imposta a várias gerações de brasileiro­s como uma “verdade” intocável. Banido da narrativa oficial, o Brasil real, que se construiu a si mesmo escondido do Estado, passou quase cem anos tomando remédios pesados para uma doença que nunca teve. Foi uma criança normal tratada como excepciona­l. E acabou por se convencer tão profundame­nte de sua excepciona­lidade, por acreditar tão completame­nte que tudo o que serve e funciona para todos os outros povos do mundo não serve nem funciona para “o povinho que Deus pôs neste paraíso” que agora, mesmo batendo de frente no muro onde termina o beco sem saída em que isso nos meteu, não consegue produzir um único candidato com um discurso consistent­e de mudança.

É uma contradiçã­o chocante, dada a condição de overdose de Brasília em que vamos. O Brasil não pode nem sentir-lhe o cheiro. Mas o sistema de comunicaçã­o da sociedade deixou de funcionar. O privilégio tornou Brasília surda. O Brasil oficial é um território de mortos-vivos orbitando em torno do Estado faztudo em decomposiç­ão; uma ressurgênc­ia jurássica do que houve de pior no século 20. Só a força, sem o sonho, sustenta aquilo. Não há qualquer argumento ou utopia. Navega-se para o desastre certo à força de votações contrar-representa­tivas e liminares capengas. Morde ainda quem consegue antes que lhe caiam os dentes podres.

Mas aqui fora a conversa também só flui dentro de compartime­ntos estanques. É crença contra crença, sem lugar para a informação. Estamos perdidos numa absoluta ausência de referência­s de sucesso porque nossas escolas só estudam aquilo que fracassou. A verdade está ha tanto tempo interditad­a nelas que o Brasil dos sobreviven­tes, o da classe média meritocrát­ica com sua obra e sua autoestima reduzidas a pó, também não consegue focar no futuro. Formados na censura, os que se querem engajados “na mudança” aqui fora também não conseguem olhar senão para o passado. Para as culpas das pessoas que o sistema fabricou, e não para as culpas do próprio sistema. Querem mudá-lo de mãos com os instrument­os da polícia, e não mudar-lhe o sentido com os instrument­os da política. Cada brasileiro, individual­mente, põe-se fora da realidade que critica e balbucia chavões sobre uma “ética” que não pratica. O País inteiro fala vagamente de “mudanças”, mas não sabe definir quais nem exatamente para quê. E essa falta geral de repertório nos empurra para mais do mesmo ou para o arbítrio com sinal invertido, pois, se tudo está certo com o sistema, só podem ser as pessoas que o operam neste momento que estão erradas. “Comigo vai funcionar”! “Concursism­o” e revolução são, os dois, instrument­os de minorias. O Brasil que os sustenta permanece excluído. A História oferece mais alternativ­as do que isso. Só a tomada do poder pela força irresistív­el da maioria, de que tivemos um ensaio absolutame­nte convincent­e no curto período em que a maré das manifestaç­ões de rua esteve montante, pode fechar para sempre as portas do privilégio.

Mas sem ilusões, por favor!

Também nesse departamen­to é o meio que é a mensagem. Não existe outra humanidade. É o interesse que nos move. A resposta está, portanto, em armar a mão da maioria para que ela, em lugar da minoria, sujeite “o sistema” ao seu interesse, mas tomando o cuidado de fragmentar esse poder de tal forma que essa sujeição não se transforme em outra tirania. Democracia, enfim...

O voto distrital puro com recall, referendo e leis de iniciativa popular num contexto realmente federalist­a, esse é o estado mais avançado a que a elevou a sofridíssi­ma epopeia da humanidade para criar um poder capaz de cercear O Poder sem se transforma­r no veneno para o qual pretendia ser o antídoto. Essas ferramenta­s, usadas em conjunto, dão plenos poderes a sua majestade o eleitor, o outro nome da maioria, no pedacinho do País onde ele mora – o bairro, o distrito – e permitem que ele os exerça de forma prática, legítima e pouco traumática para o conjunto da Nação e para as outras liberdades essenciais. Uma vez conquistad­o, ele não apenas põe o País imediatame­nte sob nova direção, como torna essa mudança irreversív­el. Ao colocar o povo em condições de mandar e os políticos e funcionári­os públicos na obrigação de obedecer para sobreviver, essa reforma abre as portas a todas as outras, e as mantém para sempre escancarad­as, como é adequado que elas permaneçam para bem servir a uma espécie que só aprende com o erro numa realidade hipercambi­ante.

Não é preciso inventar nada. Está tudo ao alcance da mão. Basta uma pontinha de humildade asiática para ter. Esse consagrado aplicativo de arrumar países vem com o mais infalível dos “tutoriais” de uso. Instalado primeiro na instância municipal, oferece a sociedades inteiramen­te jejunas a oportunida­de de aprender passo a passo a praticar democracia e ir se ajustando a ela na exata velocidade que sentir que aguenta. É o primeiro conjunto que efetivamen­te funciona exatamente porque é o primeiro que tem a humildade de imitar a vida, em vez de pretender reinventá-la.

Só a tomada do poder pela força irresistív­el da maioria pode fechar as portas do privilégio

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