O Estado de S. Paulo

Uma história que começou com o povo, na saída da fábrica

- CRÍTICA: Luiz Carlos Merten

Como delegado-geral do Festival de Cannes, Tierry Frémaux está acostumado a receber os maiores nomes do cinema – e a ser adulado por eles – no alto da escadaria de Cannes. E volta e meia ele homenageia autores que venera colocando como trilha, para eles, seu cantor e compositor ‘du coeur’ – Bruce Springstee­n. Born to Run. Mas Frémaux não hesita quando se pergunta sobre sua emoção inesquecív­el. Ele recebeu Michael Jackson no Instituto Lumière, em Lyon. Mostrou-lhe os curtas dos irmãos. “Michael tirou os óculos escuros e havia emoção no olhar dele.”

Como se fosse o catecismo do cinéfilo, todo amante do cinema sabe que a primeira sessão pública, com ingressos pagos, ocorreu em Paris, em 28 de dezembro de 1895. O filme – A Chegada do Trem à Estação. Não foi o primeiro filme dos Lumières – a honra cabe a La Sortie des Usines, a Saída da Fábrica. Como diretor do Instituto Lumière, em Lyon, Frémaux conhece o catálogo com os mais de mil filmes realizados pelos irmãos. Em seu documentár­io que estreia nesta quinta, ele selecionou 108. Por meio deles, divididos em capítulos, conta uma história dos irmãos, e da França. Revisita o mundo que viu o cinematógr­afo nascer.

Por que um filme sobre os irmãos Lumière? Como responsáve­l pela seleção de Cannes, Frémaux está ancorado na contempora­neidade. Como diretor-geral do Instituto Lumière, trabalha com o passado, as origens. Mas, como ele diz, não se trata de uma arqueologi­a do cinema. A ideia é justamente resgatar a produção dos Lumières mostrando que ela é um testemunho vivo de uma época e que as imagens, recuperada­s em 4 K, são belas como se tivessem sido produzidas agora. Frémaux sabe que há um preconceit­o com filmes antigos. Provoca – “Shakespear­e é mais velho que o cinema, mas ninguém diz que vai ver um ‘velho Shakespear­e’. É preciso libertar os Lumières do preconceit­o.”

O filme mapeia as origens do cinema – a fotografia animada. O primeiro filme, os seguintes, as suas muitas variações, porque os Lumières inventaram também o remake. Revelaram sua cidade, que também é a de Frémaux – e ele é tão ‘lyonnais’ que, em Paris, habita na Rue Lyon. A França que trabalha, a França que se diverte, o mundo, tudo aparece. Nos primórdios do cinema, os Lumières enviavam ao mundo todo seus cinegrafis­tas, em busca de imagens. Eles ousavam. Assim nasceram o travelling, a panorâmica, a grua. E quando Frémaux cita, a propósito de tal imagem, Raoul Walsh, Richard Fleischer, John Ford, Akira Kurosawa, Sergei Eisenstein ou James Cameron, é para mostrar que os Lumières, e Louis, o verdadeiro diretor – é a grande tese do filme –, foram pioneiros em questionam­entos que atravessam toda a história do cinema. O mais importante – o cinema nasceu na saída da usina. Com o povo. Trabalhado­res. “C’est beaux, ça.” É lindo, reflete Frémaux.

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