O Estado de S. Paulo

GEÓRGIA DO SUL

Não há como prever com exatidão os pontos de desembarqu­e: tudo é definido dia a dia, a partir da previsão meteorológ­ica. A única certeza é ser surpreendi­do por visuais alucinante­s

- Explosão de vida

Quando desembarqu­ei do bote sobre a areia preta da praia de Salisbury Plain, foi como se tivesse entrado em outra dimensão. Como se eu não fosse mais um humano com casacão vermelho e câmera fotográfic­a em punho. Por vezes, o sol até aparecia, mas imperava um frio de temperatur­as negativas. Uns 10 pinguins-reis logo se aproximara­m, curiosos. Mais atrás, lobos-marinhos-antárticos e elefantes-marinhos despreocup­adamente esparramad­os. Difícil segurar a emoção.

A Geórgia do Sul causa esse efeito na gente. Considerad­a a mais pulsante das ilhas subantárti­cas, reúne a maior concentraç­ão de mamíferos e aves do Atlântico Sul. Grandes metrópoles selvagens, Salisbury Plain e Saint Andrews, as duas maiores colônias de pinguins-rei da ilha, concentram cerca de 350 mil indivíduos. “Parece Tóquio”, brincou um dos guias. No mar, é comum avistar baleias jubarte e franca. Pelos ares, desfilam petréis gigantes e albatrozes.

“A vida é tão exótica e farta que faz Galápagos parecer uma fazendinha para criança”, exagera o engenheiro Sebastian Coulthard, membro da expedição e especialis­ta em história antártica. Para além dos bichos, a geografia da ilha, com 2,5 vezes o tamanho da cidade de São Paulo, é dramática, repleta de montanhas nevadas de até 3 mil metros de altitude, geleiras, fiordes e baías. E apenas 8 mil visitantes pisaram ali na última temporada.

Outro desembarqu­e foi em Gold Harbour, uma enseada compacta, onde quase não descemos em razão da quantidade de elefantes-marinhos ocupando a praia. Pinguins-rei iam e voltavam do mar trazendo alimento para os filhotes, de plumagem marrom. Emoldurand­o tudo, um dos mais belos glaciares da viagem, que outrora tocava a praia e é uma das provas de que as geleiras estão retraindo.

Na Antártida, nem todas as belezas estão em terra firme. Ao longo de três horas de navegação pelos quase 11 quilômetro­s de extensão do Drygalski Fiorde, era impossível deixar o convés do navio, mesmo com as fortes rajadas de vento castigando os cruzeirist­as. Parecia que estávamos colados aos blocos, que caíam aos poucos. Montanhas pontiaguda­s e nevadas, como as dos Andes ou as do Himalaia, brotando do fundo do mar é algo surreal.

Passado. O capitão James Cook aportou na Geórgia do Sul em 1775 e a reclamou como britânica. Depois vieram os caçadores de focas e baleeiros ao longo do século 20. Principalm­ente norueguese­s, receberam licença para abater e processar centenas de milhares de baleias até 1965. Por décadas, a ilha foi a maior produtora mundial.

Hoje, o foco é a preservaçã­o. Desde o fim da cessão do território aos norueguese­s nos anos 1960, o Reino Unido mantém na ilha uma estação de pesquisa com cerca de 15 cientistas que se alternam em ciclos de 6 meses a um ano. A base fica em Grytviken, a maior das usinas, e na antiga casa do gerente funciona um museu com a história da ilha e bichos empalhados. É o único momento em que se pode tocar na pele de pinguins e focas e perceber sua textura – nada de encostar nos animais vivos, a regra é clara. Ali há um posto dos correios com cartões-postais (que saem com carimbo da Antártida), além de uma lojinha de souvenirs.

O homem, a lenda. A Geórgia do Sul ficou famosa também pela história do navegador inglês Ernest Shackleton, que em 1914 pretendia cruzar o continente antártico passando pelo Polo Sul. À frente de 27 homens, o capitão viu seu navio, o Endurance, ficar preso numa banquisa e ser esmagado pela pressão do gelo. A partir dali se consumou, quiçá, a mais impression­ante história de sobrevivên­cia da navegação. Durante dois anos os homens ficaram desapareci­dos – mas todos saíram com vida.

Depois de deixar a Ilha Elefante numa travessia de 1.500 quilômetro­s em 16 dias, a bordo de um barco salva-vidas, Shackleton e mais cinco homens chegaram à Geórgia do Sul. Porém, do lado sul da ilha, dividida por uma cordilheir­a e geleiras com enormes fendas. Com mais dois homens, Shackleton fez o percurso em 36 horas – e sem mapas.

Caminhamos pelo último trecho dessa aventura, os 6 quilômetro­s que ligam as baías de Fortuna e Stromness. Foi emocionant­e alcançar o exato ponto em que os homens avistaram a estação baleeira, cujas ruínas seguem ali. O apito da fábrica foi a certeza de que estavam a salvo. Era 19 de maio de 1916, mas ao ecoar sua buzina pelo vale 101 anos depois da jornada, o Hebridean Sky nos fez sentir um arrepio extra.

Shackleton descansa no pequeno cemitério de Grytviken, onde morreu de enfarte em 1922. É tradição jogar um pouco de uísque em sua lápide. Ah, e na saída, fechar o portão para as focas não entrarem.

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 ??  ?? Placidez. Pinguins-rei e elefantesm­arinhos dividem a praia de Saint Andrews Bay durante passeio de caiaque
Placidez. Pinguins-rei e elefantesm­arinhos dividem a praia de Saint Andrews Bay durante passeio de caiaque

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