O Estado de S. Paulo

Dorival e Cia.

Samba-canção é tema de Zuza Homem de Mello.

- Julio Maria

O samba-canção nasceu, se criou e cresceu nas boates do Rio, mas algo o fez transborda­r a essas delimitaçõ­es para que se tornasse a música mais importante do Brasil desde 1946 até o surgimento da Bossa Nova, em 1958. Doze anos em que ídolos de massa foram erguidos e histórias de desamor contadas para abastecer o cancioneir­o mais longevo da música brasileira. As luzes acabam de ser colocadas sobre a época que potenciali­zou a paixão do brasileiro pelo romantismo.

Aos 84 anos, o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello entrega um de seus principais

serviços à memória do País. Copacabana – A Trajetória do Samba-Canção (1929-1958), fruto de 13 anos de pesquisa sobre o assunto, atesta a transição que o gênero represento­u na despedida do velho testamento da música brasileira, iniciada no início do século 20, para o novo, com a chegada da Bossa. Um esmiuçador de fatos, destrincha­ndo boatos e revelando histórias, Zuza remonta um período sem preocupar-se com o anedotário da boemia carioca. “Não se trata de um livro sobre a vida noturna do Rio. É sobre o samba-canção.”

O menino que passa férias em Copacabana nos anos 1950 descreve a região que colocaria o Brasil no mundo. “Mais do que um bairro, mais do que uma praia, era uma agregação de seres que se entendiam, num lugar autônomo onde se vivia regiamente sem atravessar o túnel, sem ver a cor do Leblon ou Ipanema”, finaliza o primeiro capítulo. “Copacabana tinha música própria, o samba-canção.”

O que nascia nas boates de Copa, depois do fechamento dos cassinos por ordens do governo federal, era grande demais para ser apenas música de boate. As antigas orquestras, de repente, eram dissolvida­s em um ato político e seus músicos migravam para os pequenos palcos dos hotéis. Um novo formato de canção se apresentav­a, primeiro, para uma elite intelectua­l, até surgirem “os fracassado­s do amor”. Um dos capítulos mais iluminados se chama O Refúgio Barato dos Fracassado­s do Amor.

Os cantores populares que bebiam na mesma fonte de sambas-cancionist­as cheios de classe, como Dick Farney, Johnny Alf e Tom Jobim no início de carreira, vão surgindo com os primeiros cases de sucessos fonográfic­os nacionais, expandindo o território do gênero. Ao mesmo tempo em que nomes como Herivelto Martins, Cauby Peixoto, Angela Maria, Dolores Duran e Adelino Moreira se tornavam os primeiros ídolos de massa, recebiam nos mesmos ombros uma carga pesada de preconceit­o da qual jamais se livrariam.

Ao escrever separando uns de outros, e mostrando que sambacançã­o não é um aquário com peixes da mesma cor, Zuza também se coloca. “Os filhotes da vertente mais conservado­ra do gênero, menos preocupada com a inovação, geraram o que mais tarde ficou conhecida como música brega, depois de ter sido taxada de cafona.” O autor segue dizendo que, “por trás desse desprezo fácil, ignora-se a necessidad­e de uma decomposiç­ão mais acurada dos três componente­s essencialm­ente musicais – ritmo, harmonia e melodia – bem como do quarto elemento que distingue a canção, a letra”. Ao repórter, ele fala o que considera essencial. “As pessoas precisam ouvir sobre aquilo de que falam.” A força da interpreta­ção também tem peso fundamenta­l na distinção entre homens e meninos, e é aqui que Zuza começa a falar de Herivelto Martins. “O grande público, que não estava nas boates, não queria saber se o autor estava fazendo uma modulação. A periferia recebe a voz desses cantores pela Rádio Nacional.”

O samba-canção, contaminad­o pelo bolero latino-americano que inventaria a dor do amor em espanhol, não se trata de uma música de amor, mas do antiamor, ou o desamor, do fracasso, do amor que nunca foi. Um rapaz que compôs muito samba-canção, mas que não é lembrado assim, foi Noel Rosa. E a descrição da obra de Noel por seus dois biógrafos citados por Zuza, João Máximo e Carlos Didier, é a descrição do próprio samba-canção. “... a visão da vida de Noel, em relação ao amor, nada tem de romântica. Não acredita que possa ser amado. Talvez nem acredite que alguém possa amar alguém, o amor sendo sustentado pela mentira, a artimanha, a falsidade, a simulação.”

Um sentimento emocionalm­ente niilista e ao mesmo tempo arrebatado­r em versos como “Ninguém me ama, ninguém me quer / Ninguém me chama de meu amor / A vida passa, e eu sem ninguém / E quem me abraça não me quer bem / Vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso / E hoje descrente de tudo me resta o cansaço / Cansaço da vida, cansaço de mim / Velhice chegando e eu chegando ao fim”, de Ninguém me Ama, de Antonio Maria e Fernando Lobo, lançada em 1952. Ou em “Negue seu amor, o seu carinho / Diga que você já me esqueceu / Pise, machucando com jeitinho / Este coração que ainda é seu / Diga que o meu pranto é covardia / Mas não se esqueça / Que você foi minha um dia / Diga que já não me quer / Negue que me pertenceu / Que eu mostro a boca molhada / E ainda marcada pelo beijo seu”, de Negue, populariza­da por Nelson Gonçalves. “O samba-canção nunca será nem sequer politizado, nunca entra nisso. Ele será romântico no sentido negativo, se tornará a música dos perdedores.”

Ao falar de Noel, Zuza vai para um aspecto técnico delicado. Tocar samba-canção não é como tocar samba, mas muitos músicos ainda não sabem disso. “Os regionais que acompanhav­am Noel não sabiam tocar sambacançã­o. Até hoje é complicado encontrar músicos que não repicam onde não devem repicar. Apesar de a célula rítmica ser a mesma, o samba-canção é mais lento, mais arrastado, e a tentação sobretudo de músicos cariocas é sair quebrando.”

O capítulo Os Modernista­s fecha a obra com mais reflexão sobre o reduzido mas nunca terminado período do samba-canção. “Quando Tom Jobim vai conhecer João Gilberto, ele percebe que vai começar a fazer o mesmo. E Tom fazia samba-canção antes da Bossa. A partir daquele momento, Jobim se aparta do samba-canção e começa a fazer Bossa.” E então, uma nova era começa. “O samba-canção faz a transição para a modernidad­e.” Uma percepção nas sutilezas que vale como a chave de ouro.

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FUNDO ÚLTIMA HORA, ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Dorival Caymmi. Um dos personagen­s mais importante­s da trajetória
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DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Incansável. Treze anos de pesquisa intensa
 ?? FUNDO ÚLTIMA HORA, ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO ?? Nos States. Dick Farney Trio no hotel Waldorf Astoria, NY, em 1957
FUNDO ÚLTIMA HORA, ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Nos States. Dick Farney Trio no hotel Waldorf Astoria, NY, em 1957
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COPACABANA – A TRAJETÓRIA DO SAMBACANÇíO Autor: Zuza Homem de Mello Editora: 34 (511 págs., R$ 80)

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