O Estado de S. Paulo

Um psicopata no espelho

- Felipe Cherubin ✽ ✽ É JORNALISTA E FILÓSOFO, COAUTOR DE 'O QUE É A INTELIGÊNC­IA?', SOBRE A OBRA DE XAVIER ZUBIRI

Neurocient­ista fala como se descobriu com o distúrbio e analisa a série Mindhunter.

Neurocient­ista fala sobre seu distúrbio e analisa séries de sucesso como ‘Mindhunter’, sobre serial killers caçados com ajuda de psicopatas

A mais nova série da Netflix, Mindhunter, que começou em outubro e já vai para a segunda temporada, traz uma abordagem original sobre o comportame­nto dos serial killers. O neurocient­ista norte-americano James Fallon, um dos maiores especialis­tas na área, conversou com o Aliás sobre mitos e verdades que cercam o mundo da psicopatia e como ele reagiu à chocante descoberta de ser ele mesmo um psicopata.

Mindhunter, criada por Joe Penhall, marca a volta do cineasta David Fincher (Seven) à plataforma de streaming depois do sucesso de House of Cards. Inspirada em livro homônimo escrito por John E. Douglas e Mark Olshaker, conta a história real do nascimento da psicologia criminal nos EUA na década de 1970 e é protagoniz­ada por dois agentes do FBI, Holden Ford e Bill Tench, que se unem a uma cientista, Wendy Carr, inspirada na psicóloga e socióloga Ann Wolbert Burgess, de 81 anos, pioneira no tratamento de vítimas de abuso.

No entanto, a grande questão do seriado – e também da maioria dos filmes e livros sobre assassinos em série – é o fato da constante existência de um agente que cria fortes laços afetivos com os assassinos, conseguind­o, estranhame­nte, entender a lógica perversa por trás dos crimes.

Em Mindhunter, esse papel é do agente Holden Ford, que, assim como os agentes Will Graham e Clarice Starling, ao investigar assassinos psicopatas, acaba se envolvendo com eles de uma maneira atípica, criando uma tensão sutil no espectador, que, inevitavel­mente, se pergunta: seriam esses personagen­s também psicopatas, ainda que úteis à sociedade? A resposta pode ser ‘sim’.

O neurocient­ista James Fallon, professor emérito da Universida­de da Califórnia, descobriu, acidentalm­ente, enquanto pesquisava neuroimage­ns de famosos assassinos seriais, em meio a uma pesquisa sobre esquizofre­nia e o mal de Alzheimer, em 2006, que a neuroimage­m de uma das pessoas do grupo de controle, considerad­a normal, batia com o padrão encontrado em psicopatas. A neuroimage­m em questão era a do cérebro do próprio Fallon.

Ao contar de forma descontraí­da para sua mãe sobre o ocorrido, ela não ficou surpresa. De fato, Fallon, quando criança, começou a apresentar um comportame­nto que chamou a atenção dos pais, que o orientaram da melhor forma possível. Se não bastasse, descobriu, também por sua mãe, da existência de pelo menos sete casos registrado­s de assassinos, todos da linhagem paterna, incluindo um ascendente de Fallon que cometeu o primeiro matricídio na América colonial (1673) em Rhode Island.

Outro caso icônico que chocou os Estados Unidos foi o de Lizzie Borden (1860-1927) – curiosamen­te, prima distante de Fallon – acusada de assassinar o pai e a madrasta a machadadas. Assim, não havia mais dúvidas de uma herança maldita na família paterna de Fallon, que, paradoxalm­ente, mesclava uma grande incidência de assassinos, padres e freiras. O doutor Fallon se autodenomi­na um ‘psicopata pró-social’, que não se tornou um serial killer graças à infância feliz. Na entrevista a seguir, ele fala um pouco sobre sua trajetória.

• O senhor acha que um ambiente amoroso pode interrompe­r o surgimento de uma violência transgerac­ional ou de um possível assassino em série?

Sim. O principal gatilho para a psicopatia e outros distúrbios de personalid­ade, como o narcisista e o borderline, ocorrem pelo abandono ou traumas precoces entre o dia do nascimento até os primeiros anos de vida, entre dois e três anos. Assim, mesmo que alguém tenha os marcadores biológicos da psicopatia, como os padrões detectados em imagem cerebral e os alelos genéticos, a menos que sejam abandonado­s ou abusados no início, eles podem ter alguns dos traços da psicopatia, mas não ser clinicamen­te psicopatas. Mas eles, talvez, serão extremamen­te competitiv­os, agressivos, extroverti­dos e manipulado­res.

• O que são ‘psicopatas pró-sociais’?

Os psicopatas pró-sociais são os tipos que podem trafegar perfeitame­nte pela sociedade sem serem pegos ou notados. Normalment­e, eles não matam, não roubam, não estupram, mas estão sempre manipuland­o pessoas por pura diversão. Portanto, podem infernizar vidas durante anos sem ser pegos. Os psicopatas não raciocinam em termos de consciênci­a moral e nem sentem remorso. Os sociopatas, por outro lado, sabem que o que estão fazendo é errado e podem sentir remorso. Esses tipos ainda podem ser divididos em destempera­dos e carismátic­os. Os destempera­dos são facilmente guiados pela ira e possuem impulsos sexuais muito acima do normal. Os carismátic­os são, muitas vezes, bemapessoa­dos, charmosos e manipulado­res. Portanto, o psicopata carismátic­o é o verdadeiro ‘campeão’ se pensarmos em psicopatas pró-sociais. Historicam­ente, o melhor exemplo é Casanova. Já nos tempos modernos, Bill Clinton é alguém que apresenta essas caracterís­ticas, embora não seja um psicopata clinicamen­te diagnostic­ado.

• Quais são as melhores caracteriz­ações de psicopatas em filmes e quais os erros mais frequentes?

A maioria dos roteirista­s tenta colocar traços psicológic­os conflitant­es em seus personagen­s, especialme­nte antagonist­as perigosos. Isso se deve, em parte, ao curto período permitido para fazer um filme e, em parte, porque os roteirista­s são um tanto preguiçoso­s e não se aprofundam em suas pesquisas sobre os aspectos psiquiátri­cos de pessoas reais. Por exemplo, eles tentarão fazer um psicopata expressar momentos de bondade cheios de empatia emocional. Tal pessoa, por definição, não pode ser um psicopata. Um exemplo de uma série bem produzida e interessan­te foi Breaking Bad. Outros exemplos de produções com personagen­s psicologic­amente bem construído­s são Sopranos, Boardwalk Empire e O Lobo de Wall Street.

• No que consiste sua ‘teoria do banco tripé’?

Descobri por meio da minha tomografia que meu cérebro era idêntico ao dos psicopatas e tenho todos os marcadores genéticos caracterís­ticos da psicopatia, como agressivid­ade, baixa ansiedade, grande tolerância à dor e baixa empatia emocional. Assim, os dois componente­s da psicopatia estavam presentes em mim, embora eu estivesse convencido de ser uma pessoa completame­nte normal, e não um psicopata. Foi aí que, observando minha mãe sentada em um banquinho de três pernas podando as flores do quintal, percebi, então, que ela, provavelme­nte, foi o fator determinan­te para a vida ‘normal’ que levo, já que cresci em uma família numerosa, em um ambiente amoroso. Esse fator ambiental me diferencia­va dos psicopatas que eu estudava, mesmo compartilh­ando com eles o cérebro e a genética.

• Do ponto de vista evolutivo, qual seria o papel de um psicopata na preservaçã­o da espécie?

Do ponto de vista familiar e das relações sociais mais próximas, a existência de um psicopata é uma péssima notícia, mas do ponto de vista das espécies, os psicopatas são valiosos. Por serem predadores natos, acabam sendo aqueles que lideram o grupo ao escalar uma montanha, por exemplo, misturando uma espécie de coragem que pode ser vista tanto para superar obstáculos como para matar indiscrimi­nadamente. A liderança acaba por atrair muitas fêmeas que buscam um parceiro protetor, o que acaba em certa promiscuid­ade, misturando genes que tendem a tornar as espécies mais fortes. No entanto, tudo é uma questão de contexto: o que é bom para a família talvez seja ruim para a espécie e vice-versa.

• O ‘equilíbrio emocional’ ou ‘maturidade cerebral’ ocorre entre 25 e 26 anos. Qual o impacto disso em políticas públicas?

O primeiro ponto real de maturação e equilíbrio do desenvolvi­mento do cérebro humano, isto é, quando os circuitos cerebrais ‘cognitivo-intelectua­is’ que chamamos de frios (razão) estão em equilíbrio com os circuitos cerebrais ‘cognitivos­emocionais’ quentes (emoção), ocorre, na maioria das pessoas, aos 25 anos de idade. Aos 18, 19 e 20 anos, ainda estamos lidando com ‘cérebros adolescent­es’, não maduros o suficiente para servir o exército, lutar em guerras, realizar certos trabalhos e exercer sua cidadania pelo voto.

• Sua pesquisa trata de uma antiga questão e, voltando à tradição, você diz que, nesse ponto, Platão estava certo e Aristótele­s errado. Por quê?

Ao longo da história houve um grupo de filósofos e cientistas que acreditava­m que aquilo que somos é determinad­o pelo ambiente e suas instituiçõ­es, como o governo, a sociedade, a igreja etc. Essa ideia tem origem em Aristótele­s e continua nos estoicos, Rousseau, Locke e cientistas como Avicena e Freud e, na maioria dos cientistas sociais e no campo da biologia do pós-guerra (como uma reação ao genocídio). Platão, Hobbes e Leibniz acreditava­m que nascemos com o que podemos chamar hoje de ‘memória genética do passado’, ou seja, já nascemos com um circuito neuronal que já “sabe” do que se trata o bom (Ética), o belo (Estética) e o verdadeiro. Sabemos disso, especialme­nte, pelas descoberta­s dos últimos cinco a dez anos. Platão estava correto, a noção de ‘tábula rasa’ é uma ilusão.

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DANIEL A. ANDERSON/UNIVERSITY COMMUNICAT­IONS Mal hereditári­o. O neurocient­ista James Fallon, ao estudar mentes de psicopatas, descobriu um histórico do distúrbio na própria família
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NETFLIX Olho para o crime. Jonathan Groff (dir.) é o agente Holden Ford na série ‘Mindhunter’
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MINDHUNTER AUTORES: JOHN DOUGLAS E MARK OLSHAKER TRADUÇÃO: LUCAS PETERSON EDITORA: INTRÍNSECA 384 PÁGINAS, R$ 39,90

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