Um psicopata no espelho
Neurocientista fala como se descobriu com o distúrbio e analisa a série Mindhunter.
Neurocientista fala sobre seu distúrbio e analisa séries de sucesso como ‘Mindhunter’, sobre serial killers caçados com ajuda de psicopatas
A mais nova série da Netflix, Mindhunter, que começou em outubro e já vai para a segunda temporada, traz uma abordagem original sobre o comportamento dos serial killers. O neurocientista norte-americano James Fallon, um dos maiores especialistas na área, conversou com o Aliás sobre mitos e verdades que cercam o mundo da psicopatia e como ele reagiu à chocante descoberta de ser ele mesmo um psicopata.
Mindhunter, criada por Joe Penhall, marca a volta do cineasta David Fincher (Seven) à plataforma de streaming depois do sucesso de House of Cards. Inspirada em livro homônimo escrito por John E. Douglas e Mark Olshaker, conta a história real do nascimento da psicologia criminal nos EUA na década de 1970 e é protagonizada por dois agentes do FBI, Holden Ford e Bill Tench, que se unem a uma cientista, Wendy Carr, inspirada na psicóloga e socióloga Ann Wolbert Burgess, de 81 anos, pioneira no tratamento de vítimas de abuso.
No entanto, a grande questão do seriado – e também da maioria dos filmes e livros sobre assassinos em série – é o fato da constante existência de um agente que cria fortes laços afetivos com os assassinos, conseguindo, estranhamente, entender a lógica perversa por trás dos crimes.
Em Mindhunter, esse papel é do agente Holden Ford, que, assim como os agentes Will Graham e Clarice Starling, ao investigar assassinos psicopatas, acaba se envolvendo com eles de uma maneira atípica, criando uma tensão sutil no espectador, que, inevitavelmente, se pergunta: seriam esses personagens também psicopatas, ainda que úteis à sociedade? A resposta pode ser ‘sim’.
O neurocientista James Fallon, professor emérito da Universidade da Califórnia, descobriu, acidentalmente, enquanto pesquisava neuroimagens de famosos assassinos seriais, em meio a uma pesquisa sobre esquizofrenia e o mal de Alzheimer, em 2006, que a neuroimagem de uma das pessoas do grupo de controle, considerada normal, batia com o padrão encontrado em psicopatas. A neuroimagem em questão era a do cérebro do próprio Fallon.
Ao contar de forma descontraída para sua mãe sobre o ocorrido, ela não ficou surpresa. De fato, Fallon, quando criança, começou a apresentar um comportamento que chamou a atenção dos pais, que o orientaram da melhor forma possível. Se não bastasse, descobriu, também por sua mãe, da existência de pelo menos sete casos registrados de assassinos, todos da linhagem paterna, incluindo um ascendente de Fallon que cometeu o primeiro matricídio na América colonial (1673) em Rhode Island.
Outro caso icônico que chocou os Estados Unidos foi o de Lizzie Borden (1860-1927) – curiosamente, prima distante de Fallon – acusada de assassinar o pai e a madrasta a machadadas. Assim, não havia mais dúvidas de uma herança maldita na família paterna de Fallon, que, paradoxalmente, mesclava uma grande incidência de assassinos, padres e freiras. O doutor Fallon se autodenomina um ‘psicopata pró-social’, que não se tornou um serial killer graças à infância feliz. Na entrevista a seguir, ele fala um pouco sobre sua trajetória.
• O senhor acha que um ambiente amoroso pode interromper o surgimento de uma violência transgeracional ou de um possível assassino em série?
Sim. O principal gatilho para a psicopatia e outros distúrbios de personalidade, como o narcisista e o borderline, ocorrem pelo abandono ou traumas precoces entre o dia do nascimento até os primeiros anos de vida, entre dois e três anos. Assim, mesmo que alguém tenha os marcadores biológicos da psicopatia, como os padrões detectados em imagem cerebral e os alelos genéticos, a menos que sejam abandonados ou abusados no início, eles podem ter alguns dos traços da psicopatia, mas não ser clinicamente psicopatas. Mas eles, talvez, serão extremamente competitivos, agressivos, extrovertidos e manipuladores.
• O que são ‘psicopatas pró-sociais’?
Os psicopatas pró-sociais são os tipos que podem trafegar perfeitamente pela sociedade sem serem pegos ou notados. Normalmente, eles não matam, não roubam, não estupram, mas estão sempre manipulando pessoas por pura diversão. Portanto, podem infernizar vidas durante anos sem ser pegos. Os psicopatas não raciocinam em termos de consciência moral e nem sentem remorso. Os sociopatas, por outro lado, sabem que o que estão fazendo é errado e podem sentir remorso. Esses tipos ainda podem ser divididos em destemperados e carismáticos. Os destemperados são facilmente guiados pela ira e possuem impulsos sexuais muito acima do normal. Os carismáticos são, muitas vezes, bemapessoados, charmosos e manipuladores. Portanto, o psicopata carismático é o verdadeiro ‘campeão’ se pensarmos em psicopatas pró-sociais. Historicamente, o melhor exemplo é Casanova. Já nos tempos modernos, Bill Clinton é alguém que apresenta essas características, embora não seja um psicopata clinicamente diagnosticado.
• Quais são as melhores caracterizações de psicopatas em filmes e quais os erros mais frequentes?
A maioria dos roteiristas tenta colocar traços psicológicos conflitantes em seus personagens, especialmente antagonistas perigosos. Isso se deve, em parte, ao curto período permitido para fazer um filme e, em parte, porque os roteiristas são um tanto preguiçosos e não se aprofundam em suas pesquisas sobre os aspectos psiquiátricos de pessoas reais. Por exemplo, eles tentarão fazer um psicopata expressar momentos de bondade cheios de empatia emocional. Tal pessoa, por definição, não pode ser um psicopata. Um exemplo de uma série bem produzida e interessante foi Breaking Bad. Outros exemplos de produções com personagens psicologicamente bem construídos são Sopranos, Boardwalk Empire e O Lobo de Wall Street.
• No que consiste sua ‘teoria do banco tripé’?
Descobri por meio da minha tomografia que meu cérebro era idêntico ao dos psicopatas e tenho todos os marcadores genéticos característicos da psicopatia, como agressividade, baixa ansiedade, grande tolerância à dor e baixa empatia emocional. Assim, os dois componentes da psicopatia estavam presentes em mim, embora eu estivesse convencido de ser uma pessoa completamente normal, e não um psicopata. Foi aí que, observando minha mãe sentada em um banquinho de três pernas podando as flores do quintal, percebi, então, que ela, provavelmente, foi o fator determinante para a vida ‘normal’ que levo, já que cresci em uma família numerosa, em um ambiente amoroso. Esse fator ambiental me diferenciava dos psicopatas que eu estudava, mesmo compartilhando com eles o cérebro e a genética.
• Do ponto de vista evolutivo, qual seria o papel de um psicopata na preservação da espécie?
Do ponto de vista familiar e das relações sociais mais próximas, a existência de um psicopata é uma péssima notícia, mas do ponto de vista das espécies, os psicopatas são valiosos. Por serem predadores natos, acabam sendo aqueles que lideram o grupo ao escalar uma montanha, por exemplo, misturando uma espécie de coragem que pode ser vista tanto para superar obstáculos como para matar indiscriminadamente. A liderança acaba por atrair muitas fêmeas que buscam um parceiro protetor, o que acaba em certa promiscuidade, misturando genes que tendem a tornar as espécies mais fortes. No entanto, tudo é uma questão de contexto: o que é bom para a família talvez seja ruim para a espécie e vice-versa.
• O ‘equilíbrio emocional’ ou ‘maturidade cerebral’ ocorre entre 25 e 26 anos. Qual o impacto disso em políticas públicas?
O primeiro ponto real de maturação e equilíbrio do desenvolvimento do cérebro humano, isto é, quando os circuitos cerebrais ‘cognitivo-intelectuais’ que chamamos de frios (razão) estão em equilíbrio com os circuitos cerebrais ‘cognitivosemocionais’ quentes (emoção), ocorre, na maioria das pessoas, aos 25 anos de idade. Aos 18, 19 e 20 anos, ainda estamos lidando com ‘cérebros adolescentes’, não maduros o suficiente para servir o exército, lutar em guerras, realizar certos trabalhos e exercer sua cidadania pelo voto.
• Sua pesquisa trata de uma antiga questão e, voltando à tradição, você diz que, nesse ponto, Platão estava certo e Aristóteles errado. Por quê?
Ao longo da história houve um grupo de filósofos e cientistas que acreditavam que aquilo que somos é determinado pelo ambiente e suas instituições, como o governo, a sociedade, a igreja etc. Essa ideia tem origem em Aristóteles e continua nos estoicos, Rousseau, Locke e cientistas como Avicena e Freud e, na maioria dos cientistas sociais e no campo da biologia do pós-guerra (como uma reação ao genocídio). Platão, Hobbes e Leibniz acreditavam que nascemos com o que podemos chamar hoje de ‘memória genética do passado’, ou seja, já nascemos com um circuito neuronal que já “sabe” do que se trata o bom (Ética), o belo (Estética) e o verdadeiro. Sabemos disso, especialmente, pelas descobertas dos últimos cinco a dez anos. Platão estava correto, a noção de ‘tábula rasa’ é uma ilusão.