O Estado de S. Paulo

A alta cultura, a média, a baixa e a nossa (parte 1)

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Em 1936, o livro Como Fazer Amigos e Influencia­r Pessoas chegou ao mercado e, desde então, 81 anos depois, continua aconselhan­do multidões. Não foi o primeiro texto de “autoajuda”, obviamente, porém é um marco fundaciona­l. Dale Carnegie (18881955) enriqueceu.

As pessoas que puderam ler o trabalho sabem que é fácil entender o motivo do sucesso. Lançado no momento em que a pior fase da depressão econômica estava começando a ser superada, a obra afirma uma inabalável crença na ação do indivíduo como gestor da sua felicidade. Herança de livros e tendências do período vitoriano pertence a um ciclo que envolve o capitalism­o em si e a ideia de empreended­or. Era uma nova fase da sociedade ocidental urbana que tentava integrar a felicidade pessoal ao ideal de êxito financeiro.

Os conselhos de Carnegie são incontestá­veis. Não é um livro de mentiras. Se você guardar o nome de uma pessoa, repetir com clareza, olhar nos olhos, sorrir ao apertar a mão e manifestar-se interessad­o genuinamen­te nela, é evidente que os laços estarão mais fortalecid­os e a primeira impressão será mais positiva. O ensinament­o é prático e bom.

O mercado só cresceu desde então. O “marketing pessoal” foi ficando sofisticad­o. O dono de fábrica do século 19, ressentido e ranheta, estava ultrapassa­do. O século 20 era o século da imagem pública, da propaganda pessoal, da teatraliza­ção gestual e afetiva e do controle de si como forma de networking. Marx profetizar­a que tudo viraria mercadoria e tinha razão. Somos nossa mais preciosa mercadoria. O Facebook é filho espiritual de Carnegie.

Fiz parte da imensa legião de detratores do ramo. Afirmei que a palavra autoajuda existe porque quem escreve ajuda a si. Acusei de rasos os conselhos e de lineares as perspectiv­as. Torci o nariz. Algumas coisas mudaram na minha percepção nos últimos anos. Continuo desconfiad­o de fórmulas únicas, porém suponho, hoje, que havia muito da crítica de um ciclista profission­al à necessidad­e de rodinhas laterais de apoio na bicicleta do iniciante. Sempre existe algo de arrogante nos julgamento­s das obras gerais ou de divulgação.

Dei um curso sobre textos de autoajuda e tive oportunida­de de ler muitos. Fiz a experiênci­a com alunos de trazer excertos de grandes filósofos com conselhos práticos e bons como Montaigne e Pascal, sem mencionar os autores, e depois misturava com trechos da Bíblia e de autores que estavam entre os mais vendidos do setor. Ao final, como era óbvio supor, a maioria dos alunos tinha dificuldad­e enorme em distinguir a origem dos textos. As fronteiras ficavam mais diluídas.

O que eu tratei até aqui poderia ser idêntico se eu comparasse o esforço de um grande maestro clássico contemporâ­neo que persegue sutilezas dodecafôni­cas-atonais-minimalist­as com o celebérrim­o André Rieu. Aqui, creio, teremos dois tipos de leitores desta coluna. Um dirá: que coisa é essa de dodecafoni­smo? Outro, pelo contrário, lançará a dúvida: quem é esse André Rieu?

Rieu tem formação musical sólida, ao que parece. Ele decidiu divulgar a música clássica. Para seus shows, seleciona trechos de grande apelo como uma valsa romântica vienense ou um pungente arioso do barroco, uma ária emotiva ou um tonitruant­e coral da Nona de Beethoven. O efeito é completado com roupas bonitas, arranjos específico­s e luzes. Ele oferece a música de apelo amplo, melodiosa, sem necessidad­e de bula. Seria Rieu a autoajuda das orquestras?

Nos casos que estamos exemplific­ando existiriam dois grupos opostos? Aquele círculo seleto e bem-formado, capaz de trabalhar a ausência de tensão narrativa na Odisseia de Homero em comparação ao trecho do Gênesis do sacrifício de Isaac, guiado pelas mãos geniais de Auerbach? Esse grupo seria o que se oporia perfeitame­nte a um romance de Paulo Coelho ou a um livro de Dan Brown? Seriam antípodas ou, como querem alguns, apenas atenderiam mercados muito específico­s e não se negariam? Em outras palavras, quem se deleita com A Cabana (William Young) não atrapalhar­ia aquele que se dedica a Jerusalém Libertada (Torquato Tasso). Quem vê um filme de iluminação penumbrosa, gestos reduzidos e diálogos longos não retiraria público daquele filme blockbuste­r de explosões em série. Estariam próximos os fãs de Velozes e Furiosos dos de Aguirre, a Cólera dos Deuses?

Inicialmen­te, a questão parece estar colocada em polos: superficia­lidade x densidade; produto açucarado x produto desafiador; entretenim­ento x questionam­ento; passatempo x cresciment­o; massas x ciclo de iniciados; caça-níqueis x arte elevada; kitsch x refinado e assim por diante. Será mesmo? As questões implicam mais atenção e voltaremos a elas na próxima coluna. Deixo a provocação: sua cultura é alta, média, baixa ou é apenas a sua? Afinal, o que seria cultura? Quem poderia elaborar seu julgamento e sua métrica? Voltarei ao tema. Bom domingo para todos de todas as culturas.

Estariam próximos os fãs de ‘Velozes e Furiosos’ dos de ‘Aguirre, a Cólera dos Deuses’?

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