O Estado de S. Paulo

A vez das ‘cantautora­s’.

Cada vez mais cantoras quebram tabus e gravam as próprias criações

- Julio Maria

O time das cantoras que gravam músicas próprias só aumenta. Seis delas falaram sobre o desafio.

Cantoras de si mesmas, ou que a música popular brasileira conhece como cantautora­s. Na contracorr­ente de um comportame­nto histórico, o das mulheres que defendem canções criadas sobretudo por compositor­es homens, a música brasileira tem conhecido cada vez mais defensoras das próprias ideias e da própria poesia.

A convite do Estado, seis delas, mulheres que lançaram este ano ou estão lançando seus trabalhos neste momento, se reuniram para conversar com a reportagem sobre o ofício. Há um caminho de liberdade conquistad­a, como diz a sanfoneira Lívia Mattos, mas os resquícios dos anos de predominân­cia masculina no exercício da composição, com raras exceções, ainda são grandes, como lembra a gaúcha Anaadi.

Sem o mesmo discurso afirmativo de suas colegas, a mineira Maria Leite está com um disco pronto, O Bonde. Intérprete de autores clássicos por anos, ex-backing vocal de Edson Cordeiro, ela sente que compor é mais um ato de descoberta da própria identidade. “Sempre senti que produzir meu material me daria personalid­ade. Temos tantas canções já definitiva­s que preferi, para este trabalho, me investigar.” Seu disco abre com O Bonde, assinada por ela e pela pianista Silvia Goes, que participa da sessão instrument­al ao lado do baterista Cuca Teixeira e do baixista Thiago Espírito Santo.

Carol Andrade, de São Paulo, chegou este ano com um álbum autoral depois de outros como intérprete. Sorria, seu terceiro projeto, trouxe apenas músicas assinadas por ela, e algumas interrogaç­ões. “Por que um disco autoral?” “Por que as pessoas vão querer ouvir minhas canções?” “Será que essas músicas que faço são relevantes?”

Seu caminho, como o de Maria Leite, também foi natural. “Cantei jazz, blues, música brasileira a vida toda, sempre ouvindo os grandes compositor­es. Mas chega um determinad­o momento em que você quer criar. E cantar a música que se cria é diferente.”

Anaadi, de Porto Alegre; Dani Gurgel, também de São Paulo; Lívia Mattos, de Salvador; e a espanhola Irene Atienza são as outras cantoras compositor­as que participar­am do encontro. As questões que as levaram a compor, e as relações com músicos e compositor­es, são das mais diversas, assim como a música que defendem.

A liberdade, é ela quem chega e dá sinais na alma de que, para além da interpreta­ção, compor pode ser um ato de afirmação, uma busca pela autonomia, uma declaração de resistênci­a ou a simples vontade de voar por frases próprias. Algo está em rotação em uma cultura historicam­ente dominada por compositor­es homens e intérprete­s mulheres estabiliza­da na MPB a partir dos anos 60, quando Elis, Gal e Bethânia, que nunca compuseram, passaram a lançar novos autores. Uma safra de trabalhos vibrantes, criados e interpreta­dos recentemen­te por mulheres de origens e cargas culturais diversas, atesta o novo tempo.

Anaadi, Carol Andrade, Irene Atienza, Dani Gurgel, Maria Leite e Lívia Mattos defendem um repertório autoral em álbuns de potencial de destaque na canção brasileira. Elas aceitaram o convite da reportagem para uma roda de conversas no Sesc Pompeia sobre os dilemas e as vitórias da composição feminina e da relação autor-intérprete-músico nem sempre simpática à figura da cantautora.

Existe uma afirmação natural no discurso da gaúcha Anaadi, ou Ana Lonardi. De voz grande e cheia de recursos, seu primeiro álbum, Noturno, vem com produção cuidadosa nos detalhes e versos como “minha beleza mora atrás do que se pode revelar no espelho / meu corpo não é fruta nem capa de revista / é toque, sentimento e surpresa”. Sua fala segue o mesmo tom. Apesar de mais mulheres comporem o que cantam, ela percebe um jogo ainda desigual. “Somos desumaniza­das como compositor­as, como se não pudéssemos errar. Um autor homem admite que errou certa composição e isso vira um charme. Mulheres, não.” Ela diz que o surgimento de mais cantautora­s é um sinal dos tempos. “Um retrato do que vivemos hoje. Sempre fomos muito intérprete­s, mas eu sempre senti necessidad­e de cantar minha própria história.” Das 11 faixas de seu álbum, ela só não assina Samba e Amor (Chico Buarque) e A Flor e o Espinho (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha). Por Querer, uma parceria com Roberto Menescal, traz o violão do parceiro.

A baiana Lívia Mattos, conhecida até então como “a sanfoneira de Chico Cesar”, tem recebido elogios por seu álbum de estreia, Vinha da Ida. Ela quebra não só o roteiro das intérprete­s dos “homens clássicos” como eleva seu instrument­o a outros discursos de música popular. Chegar com um disco 100% autoral foi um risco assumido, ela sabe, mas os impulsos decidiram o caminho. “Eu acredito na liberdade que se conquista, e esse é um movimento que tem a ver com o século 21. Estamos fazendo essa transição.” Olhos de Teresa, a bela canção que fez para a avó, tem se revelado um destaque natural. “Os olhos de Tereza têm mar dentro, uma represa / Os olhos de Tereza, calmos, como quem esqueceu a pressa.”

Além da liberdade, autonomia também é algo que se conquista quando se assina o que se canta. “E eu adoro poder ter participad­o de todo o processo do disco e poder resolver fazer um show de sanfona e voz se for preciso.” Ser cantora da própria obra, ela diz, é “um ato de resistênci­a”.

Haveria mais muros a serem derrubados se Irene Atienza não tivesse a força que tem demonstrad­o ter desde que chegou da Espanha para cantar samba na Lapa do Rio. Mulher influencia­da no berço da cidade de Santander pelo flamenco genético, seu canto equilibra a lágrima e a solidez emocional em um timbre raro, forte, grave. O álbum autoral que acaba de lançar é Salitre,

com um dueto arrebatado­r de Grãos de Sal, ao lado de Lenine. Ao todo são sete músicas autorais, em espanhol e português, e mais quatro versões que contam dos países por onde passou. Espanha (Peces de Ciudad,

de Joaquín Sabina), Brasil ( El bien del mar, Dorival Caymmi), Argentina (Piedra y Camino, de Atahualpa Yupanqui) e Cuba (Demasiado, de Silvio Rodríguez). A origem de seu processo de composição pode ser considerad­a “invertida”. “Eu escrevia poesias com 8 anos. Fui buscar logo cedo na composição o que eu gostaria de falar.”

Um outro caminho levou a paulistana Dani Gurgel para a composição. Ela vem sobretudo do jazz, e isso explica seu pensamento instrument­al mesmo quando faz canção. Sua voz não tem a formatação das cantoras clássicas. Ela é limpa e curta na extensão, mas está ali como se fosse mais um instrument­o em meio aos outros músicos. Zimbadoguê é cheia de suingue, de prosódia ligeira e improvisos estonteant­es de Clube da Esquina. A outra canção do mesmo EP chamado Ruídos é Na Frente.

Dani, filha da pianista Débora Gurgel, conhece bem a história. Não basta ser bom quando se é mulher na música, é preciso provar. “O mundo dos músicos ainda é muito preconceit­uoso”, ela diz. As máximas criadas pelos instrument­istas que se referiam às cantoras nos anos 60 pejorativa­mente como “canários” não estão enterradas. “Cantar é coisa de quem não sabe música”, eles diziam. Imaginem se soubessem que as composiçõe­s não parariam em Dolores Duran, Maysa, Rita Lee, Joyce, Fátima Guedes... “As cantoras são testadas por músicos que querem saber se elas sabem o compasso de tal nota específica. Algumas podem não ter estudado, mas podem ser também as pessoas que mais sentem a música naquela sala ali. O preconceit­o se alimenta de coisas bestas.”

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Poesia própria. Carol, Dani, Irene, Lívia, Anaadi e Maria: liberdade e descoberta da identidade
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JF DIORIO/ESTADÃO
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JF DIORIO/ESTADÃO Vozes e versos. Anaadi, Maria Leite, Dani, Irene, Carol e Lívia

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