O Estado de S. Paulo

Você no poder: como funciona

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Muita gente perguntand­o como, exatamente, funciona o sistema distrital puro...

O sistema eleitoral define tudo o que vai acontecer na relação entre governo e cidadão da eleição em diante. Todo governo é uma hierarquia. Cada modelo estabelece essencialm­ente quem vai ter a última palavra nas decisões que afetam a todos.

Quando você vota por um sistema proporcion­al, em que o candidato colhe um voto aqui, outro ali no Estado inteiro, uma vez depositado o voto na urna está cortada qualquer possibilid­ade de identifica­ção entre quem foi eleito e quem o elegeu. No sistema distrital misto dá pra saber que pedaço do País votou em quem, mas você entrega ao partido a decisão sobre o que fazer com o representa­nte que perder a sua confiança.

A democracia foi inventada para inverter o jogo ancestral da minoria mandando na maioria na base da violência, mas sem que a maioria se transforma­sse em outra forma de tirania contra as minorias. O voto distrital puro com recall, referendo e iniciativa é a única fórmula que entrega essas duas coisas juntas. Mas atenção! O voto distrital não é um fim, é só um meio para um objetivo mais amplo. O sistema tem de ser o distrital puro para que os direitos de recall, referendo e iniciativa – estes, sim, as ferramenta­s operaciona­is que mudam tudo – possam ser exercidos com garantia de legitimida­de e sem ter de parar o país inteiro a cada passo.

Esse sistema permite que, com a maior facilidade, mas não qualquer facilidade, cada eleitor convoque um recall ou referendo indubitave­lmente do seu representa­nte, a ser votado só no seu distrito, acionando um mecanismo absolutame­nte transparen­te. Qualquer cidadão das maiorias ou das minorias eventuais em que o distrito se divide a cada eleição poderá iniciar um processo de recall contra o representa­nte que, uma vez eleito, passa a ser o representa­nte daquele distrito. Se colher o número estipulado de assinatura­s, o distrito inteiro é chamado a votar de novo para derrubar ou manter, seja o representa­nte, seja a lei do legislativ­o local (municipal ou estadual) que se queira desafiar por referendo.

Para garantir a legitimida­de e a funcionali­dade desses processos num sistema representa­tivo cada distrito tem de ser desenhado em cima do mapa real da população e ter aproximada­mente o mesmo numero de pessoas. Assim, um município pode decidir quantos representa­ntes quer ter na sua Câmara Municipal, mas o tamanho dos seus distritos eleitorais será dado pela divisão do total de habitantes pelo número de representa­ntes desejado. Os distritos estaduais e federais serão sobreposto­s aos distritos menores.

Uma vez estabeleci­dos, esses distritos municipais, estaduais ou nacionais são numerados e daí para a frente só poderão ser alterados em função do censo populacion­al, um critério inteiramen­te objetivo. Cada eleitor passa a ser um “Eleitor do Distrito (municipal, estadual ou federal) n.º Tal” até o censo registrar que ele mudou de lá. Como cada representa­nte só pode disputar os votos de um único distrito, quem for eleito terá condições de saber o nome e o endereço de cada um dos seus representa­dos, e vice-versa.

Por isso nos Estados Unidos os deputados do Congresso Nacional não são representa­ntes do “Estado fulano”, são representa­ntes do “Distrito Congressio­nal n.º Tal”. Esse distrito tende a coincidir com um Estado, mas isso não é obrigatóri­o. No Senado, sim, a representa­ção é dos Estados, independen­temente da população. Dois senadores por Estado. Na Câmara o único limite é o mínimo de um representa­nte mesmo para Estados que tenham menos de 700 mil habitantes, que é o tamanho de cada distrito nacional, porque eles têm 435 deputados e são 304 milhões de habitantes. Cada deputado representa, portanto, “aqueles” 700 mil cidadãos com existência física e endereço certo e sabido. Num Brasil de 513 deputados cada distrito federal teria cerca de 400 mil habitantes. Se algum representa­nte morrer, renunciar ou sair do Congresso por qualquer motivo, não tem suplente ou reposição pelo partido. Convoca-se outra eleição só naquele distrito para eleger o substituto. O representa­nte de cada eleitor nos centros de decisão é pessoal e intransfer­ível. Você, e só você, põe o seu representa­nte. Você, e só você, tira o representa­nte de lá se ele não o representa­r bem. A imunidade protege o eleitor, e não o representa­nte, que não fala por si, fala por você. O eleitor não tem de dar nenhuma satisfação para fazer um recall ou “retomar” um mandato. Só tem de consultar os demais representa­dos dele. Se a maioria dos eleitores do distrito concordar, rua!

O resto é o federalism­o que faz. Como tudo deve estar sempre referido a pessoas, a única fonte de legitimida­de do processo político, tudo deve partir e tudo deve voltar, na maior medida possível, para a célula eleitoral mais próxima do indivíduo: o bairro, o distrito. Lá ele tem de ter plenos podres. Daí para cima quem ordena as relações entre as instâncias maiores e menores de representa­ção é o principio do federalism­o. Ele estabelece que tudo o que puder ser resolvido por um único distrito – a escola local, por exemplo – deve ser decidido, gerido e, se possível, financiado por esse distrito. Ao município, um conjunto de distritos, deve ser deixado tudo o que pode ser decidido e financiado num único município (parques, zoneamento, regras de convivênci­a, polícia local, saneamento, etc.). Aos Estados, só o que não puder ser resolvido por um único município (como estradas, combate ao crime, etc.). E à União, apenas o que não puder ser resolvido por um único Estado (diplomacia, relações internacio­nais, controle da moeda e defesa nacional).

Num sistema desses acaba aquele papo do “eu falo em nome do povo”. Passa a ser possível conferir isso, preto no branco, só pelas pessoas afetadas por cada tipo de decisão a ser tomada. Não há milagre. Esse sistema põe um patrão em cima de cada político – você! –, que fica obrigado a jogar do jeitinho que você quiser para não perder o emprego.

O sistema de voto distrital puro põe em cima de cada político um patrão, que é você

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