O Estado de S. Paulo

Um ‘docfic’, todas as vidas recriadas por múltiplas vozes

- Luiz Carlos Merten

Dois dos maiores filmes do ano são obras sobre poesia, e poetas. Paterson, de Jim Jarmusch, desvenda a poesia do cotidiano e, no papel-título, oferece a Adam Drive a oportunida­de de uma criação memorável. O artista como um homem comum, mas nenhuma vida, e menos ainda a de um poeta, é comum. O filme é sobre o processo de criação e sobre o que há de extraordin­ário na simplicida­de. Drive está sendo – o ano não terminou – provavelme­nte o melhor ator de 2017. A melhor atriz é Cynthia Nixon, e justamente pelo outro grande filme de poesia. Além das Palavras, de Terence Davies, desvenda o universo de Emily Dickinson. A mulher no universo masculino. O domínio das palavras por uma solitária que viveu pela família, para a família.

Cora Coralina: Todas as Vidas, de Renato Barbieri, não tem a grandeza – nem a sofisticaç­ão – de nenhum dos dois, mas, em contrapart­ida, sua construção ‘nas bordas’ propõe uma alternativ­a interessan­te para contar a história de Anna. Um ‘docfic’, documentár­io ficcional. Cora é o nome artístico, e a poeta, que Drummond considerav­a a pessoa mais importante de Goiás, teve, como diz o título, inúmeras vidas. Esposa, mãe, doceira, escreveu desde muito cedo, mas publicou muito tarde. O filme tenta dar conta dessa multiplici­dade de talentos.

Usa entrevista­s, fotos, reconstitu­ição e um recurso que remete à caverna de Platão – a sombra de Cora projetada na parede. Sendo múltipla a mulher, têm de ser múltiplas as atrizes. Maju Souza, Camila Márdila e Walderez de Barros, recitando, vivenciam diferentes momentos da vida de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, que se tornou conhecida como Cora Coralina. Sua poesia tem muito de confession­al, autobiográ­fica. Mas é o tom que a faz particular. Mistura subjetivis­mo com força épica – é epilírica. Mais duas vozes agregam-se para ilustrar a poesia, e a vida – Beth Goulart e Zezé Motta.

O diretor Barbieri, brasiliens­e, foi um dos fundadores da Olhar Eletrônico, produtora de onde também saíram Marcelo Tas e Fernando Meirelles. Dispersara­m-se, cada um seguiu seu caminho. Em 2005, dirigiu As Vidas de Maria. Por meio de Maria – interpreta­da por diferentes atrizes, em diferentes momentos de sua vida –, Barbieri contava a história de Brasília. No centro de seu cinema mais autoral, está sempre a mulher.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil