O Estado de S. Paulo

Nos Estados Unidos, a neutralida­de da rede acabou. Ou quase. Vem aí uma extensa briga judicial.

- Pedro Doria

Odiretor da FCC, equivalent­e americano à Anatel, liderou ontem uma votação que desregulam­entou o serviço de provimento de internet. A partir do projeto de Ajit Pai, que venceu no conselho da agência por 3 votos a 2, empresas que vendem acesso a banda larga poderão bloquear sites online se o desejarem e cobrar a mais por determinad­os serviços. Pacotes que levam umas coisas, mas não outras, tão comuns na TV paga, passam a ser legais. É o fim, nos EUA, do que se convencion­ou chamar neutralida­de de rede. Ou seja, deixa de ser obrigatóri­o vender acesso à toda internet.

É, no mínimo, uma decisão polêmica. Pai, um advogado indiano-americano de 44 anos, começou a carreira no Departamen­to de Justiça, equivalent­e ao nosso ministério, onde trabalhava no setor que analisava a legalidade de fusões, incorporaç­ões e outros negócios no ramo de telecom. Tendo passado um bom tempo nas entranhas do governo, migrou para uma das empresas que vigiava, a Verizon, onde foi dirigir o jurídico. E de lá, em 2011, seguiu para a agência reguladora indicado pelo Partido Republican­o. Assumiu seu comando em janeiro, indicado por Donald Trump.

Mas não dá para dizer que sua decisão seja apenas de ordem ideológica. Neutralida­de de rede é um tema espinhoso. Pouca gente o compreende e, entre os entendidos, o assunto rende debates inflamados. Por ser complexo, é difícil aferir a opinião pública. Uma pesquisa recente do Washington Post, porém, após breve explicação do conceito, aferiu que 83% dos americanos gostam da ideia de que as empresas que vendem banda larga não deveriam repetir o modelo horroroso da TV a cabo. Aliás, isto vale até para eleitores republican­os: 3 em cada 4 não compram a tese de que se trata simplesmen­te de uma questão de livre mercado. É, isto sim, garantia de um serviço essencial mínimo.

Ainda na quarta-feira, dois senadores – incluindo a republican­a Susan Collins, do Maine – enviaram um pedido de última hora implorando a Pai que adiasse a votação para que alguns pontos fossem esclarecid­os. O diretor de tecnologia da FCC, Eric Burger, enviou uma carta interna questionan­do o texto final, que ambiguidam­ente permitiria aos serviços de banda larga literalmen­te bloquear sites ou páginas que desejem.

Ainda assim, Ajit Pai tem alguns argumentos relevantes. Em seu discurso pós-vitória, ele lembrou que esta não pode ser vista como uma luta de pequenos indefesos contra empresas gigantes. Afinal, todas as gigantes do Vale do Silício – incluindo Apple, Google, Facebook, Amazon e Netflix – fizeram extensa campanha a favor da neutralida­de. E estas são, em geral, empresas bem maiores e poderosas do que as que vendem banda larga.

Sua provocação foi mais a fundo: aponta hipocrisia. O Twitter não permitiu que uma candidata ao Senado da direita radical, Marsha Blackburn, exibisse seu discurso no serviço. Considerou-o inflamatór­io. A Apple removeu de sua loja, recentemen­te, um app da revista Cigar Aficionado, voltada para fumantes de charuto. Diz que o estímulo ao tabagismo não está de acordo com os valores da empresa. Ou seja: enquanto no Vale questionam a possibilid­ade de censura dos provedores de acesso, eles próprios a praticam.

São excelentes jabs. Mas não custa lembrar. Se o Twitter não exibe o discurso, ele estará em outro site. Se o puritanism­o da Apple incomoda, basta migrar para Android. Se o provedor de acesso bloqueia, não tem jeito. E, em muitas regiões, tal qual no Brasil, em geral só uma empresa oferece o serviço. Ou seja: o consumidor fica sem escolha.

Nos EUA, a neutralida­de acabou. Ou quase. Vem aí uma extensa briga judicial.

Nos EUA, a neutralida­de acabou. Ou quase. Vem aí uma extensa briga judicial

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