O Estado de S. Paulo

A violência deveria estar no topo da agenda de um país onde se mata mais que em um país em guerra, como a Síria.

- Fernando Gabeira

Ofim de ano coincide com a divulgação do número de assassinat­os no Brasil, nos primeiros 15 anos do século 21: 278.839. Mais do que a Síria, que vive uma longa guerra.

Anualmente são assassinad­as 60 mil pessoas. A cada dez minutos alguém perde a vida pelas mãos de outro.

Essa mortandade dispersa passou ao largo da agenda política brasileira. Lembro-me de que, no início do processo de democratiz­ação, o foco voltouse para os direitos humanos.

Em São Paulo, foi criada a Comissão Teotônio Vilela, da qual fiz parte. No Rio, Brizola implodiu o presídio da Ilha Grande.

A visão dominante na época tendia a considerar o crime nas ruas do Brasil como consequênc­ia direta da desigualda­de social, da aspereza da vida nos bairros pobres. Mas os números indicam que países ainda mais pobres que o Brasil têm índices menores de assassinat­os. É preciso mais que políticas sociais.

Uma projeto nacional de segurança, monitorado diretament­e pelos presidente­s que mais ficaram no cargo, Fernando Henrique e Lula, nunca veio à luz. Suponho que exista uma certa tendência aristocrát­ica a considerar o fato policial algo secundário diante dos grandes temas do País.

Os jornais de qualidade, no passado, estruturav­am seu trabalho como se fossem uma réplica do próprio governo, com suas pastas ministeria­is: política, relações exteriores, economia e agricultur­a. Havia setor policial, com legendário­s repórteres, mas era de longe um setor secundário. Não dava o que pensar. Era como se multiplica­ssem pequenas tragédias, o que desde os gregos parecia algo integrado ao destino humano.

No momento em que se esgota o período inicial da democratiz­ação, o abismo entre a gravidade da violência no Brasil e seu lugar na agenda brasileira cresceu enormement­e.

Estamos no limiar do ano novo, em que as eleições prometem ser o tema central. Com vários pré-candidatos em cena, a questão da violência ainda passa ao largo, exceto para Jair Bolsonaro, que enfatiza sua importânci­a. Suas propostas, no meu entender, tocam num tema inescapáve­l: como envolver a sociedade na autoproteç­ão, como descentral­izar uma tarefa maior que o Estado?

A resposta de Bolsonaro para esse tópico é legalizar o porte de arma, ampliando a capacidade de defesa individual. É um caminho seguido nos EUA, certamente confirmado nas urnas com a vitória de Trump. Mesmo lá é cotidianam­ente combatido, pela sucessão de massacres cometidos por atiradores isolados.

O mesmo princípio de envolvimen­to social levaria ao uso de outras armas que não as de fogo: a informação e uma intensa troca entre polícia e sociedade. Sempre que falo dessa tema, os defensores das armas contestam: que fazer num assalto, com um smartphone na mão?

Possivelme­nte, nada, a não ser configurá-lo antes para ser rastreado e oferecer a pista à polícia. Mas em outras situações, a capacidade de prevenir por meio de avisos, mapas e dados que brotam da interação permanente pode salvar muitas vidas.

Se é para falar em experiênci­a americana, a mais útil no Brasil seria a de estimular iniciativa­s da sociedade, até independen­tes do governo. Nossa expectativ­a de que o governo resolva sozinho é mais parecida com a tendência europeia.

Para alcançar esse projeto de cooperação será preciso uma longa marcha através de uma cultura que desconfia da polícia e romantiza o crime. Certamente isto tem raízes em nossa História colonial. Não foi à toa que Dilma sacou Joaquim Silvério dos Reis, o traidor da Inconfidên­cia Mineira, para compará-lo aos delatores da Lava Jato. É um absurdo igualar uma luta de libertação nacional ao assalto à maior empresa pública do País. Mas ela escolheu a imagem pelo seu conteúdo emocional.

Claro que essa cultura tem também alguma referência­s concretas: a qualidade da polícia. Transplant­ada dos EUA para o Brasil, a campanha antidrogas nas escola, feita com palestras de policiais, é uma a experiênci­a não funcionou bem. Os policiais brasileiro­s não despertava­m a mesma empatia nos estudantes.

Mas se o argumento para não cooperar está baseado na qualidade da polícia, por que não dar uma volta nele e perguntar: o que vem primeiro, a baixa qualidade da polícia ou a subestimaç­ão cultural do seu papel?

Os países em guerra põem esse tema no topo da agenda, entre outras razões, porque morre muita gente. Se esse argumento tem algum peso, a violência deveria estar no topo da agenda nacional num país onde morre muito mais gente do que na guerra.

A diferença é que na guerra as pessoas se organizam para matar. Aqui alguns se organizam em quadrilhas e em grande parte os assassinos são indivíduos atomizados. Matam as outras vivendo sob a mesma bandeira nacional, às vezes no mesmo bairro ou o sob o mesmo teto. Vivemos uma guerra visceral.

Os contornos da campanha de 2018 ainda são muito difusos. Se o tema da segurança pública for tratado com a formalidad­e burocrátic­a típica dos nossos programas políticos, os candidatos farão discursos para um País imaginário.

A experiênci­a dos últimos anos nos desgastou muito. Brigas, ofensas, isso enfraquece a possibilid­ade acordos nacionais em alguns temas.

Em segurança pública, reconheço que é difícil um acordo com forças que romantizam o crime e veem na polícia um instrument­o de opressão das classes dominantes. Se também aí não for possível um acordo nacional, que nossa geração de políticos, cujo ciclo se encerra, ao menos reconheça o fracasso retumbante num tema: o saneamento básico. Esquerda, direita, centro, estamos todos na mesma m...

Avançar numa tarefa que alguns países alcançaram ainda no século 19 é algo que dispensa mimimis, estrelismo­s e bate-bocas: seria uma maneira digna de encerrar um período cuja etapa derradeira foi uma distância abissal entre sistema político e sociedade.

A violência devia estar no topo da agenda de um país onde se morre mais do que na guerra

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