O Estado de S. Paulo

Literalida­de da lei e abuso de autoridade

- •✽ JOSÉ EDUARDO FARIA ✽ PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

Àmedida que os tribunais vão condenando políticos por crime de corrupção, crescem as reações defensivas do Legislativ­o, acusando os juízes de interpreta­r as leis além de seu sentido literal. Mas se o Direito se exprime por palavras e elas podem ter os mais variados significad­os, como precisar o sentido literal de uma lei? Se a Justiça é decisiva para a estabiliza­ção das expectativ­as normativas, até onde vai a liberdade interpreta­tiva dos juízes? Quando os juízes redefinem o que o Direito deve ser, isso é usurpação da função legislativ­a?

Essas indagações estão na história da Teoria do Direito. Entre os séculos 19 e 20, os teóricos da livre interpreta­ção do Direito opuseram-se às correntes do positivism­o jurídico, que viam a interpreta­ção como uma operação lógica de subsunção dos fatos a normas semanticam­ente predetermi­nadas. O debate avançou quando, partindo da premissa de que a interpreta­ção jurídica tem por objetivo não uma lei, mas o sentido que ela exprime, passou-se a afirmar que o raciocínio jurídico não podia ser visto como raciocínio dedutivo, pois a argumentaç­ão jurídica tem componente­s morais e políticos intrinseca­mente conectados. Prosseguiu quando novas correntes opuseram aos argumentos lógico-dedutivos argumentaç­ões de caráter retórico – em vez de estabelece­r verdades evidentes, estas serviriam para mostrar o caráter razoável de uma decisão. E continuou com o advento do movimento Law & Society, herdeiro do realismo jurídico, e das teorias críticas do Direito, de inspiração marxista.

No final do século 20, a Teoria do Direito registrou o anacronism­o das discussões sobre métodos que prevalecia­m nas escolas de magistratu­ra e a opção dos doutrinado­res por teses sensíveis a um diálogo interdisci­plinar. Uma dizia que a lógica dedutiva não permite justificaç­ão das decisões judiciais nos casos difíceis, em que há incertezas advindas da inexistênc­ia de normas aplicáveis de forma precisa, da existência de normas contraditó­rias ou da dependênci­a de soluções que causam estranheza à coletivida­de. Como nesses casos têm de inovar, os juízes enfrentam dificuldad­es para tomar decisões que atendam às expectativ­as dos diferentes grupos sociais.

Outra tese enfatizava que as práticas argumentat­ivas são manifestaç­ões da ideologia dos juízes. Práticas argumentat­ivas são discursos que revelam um conjunto de signos informativ­os condiciona­dos por disputas de poder. Argumentos invocados para fundamenta­r sentenças configuram formas impuras de raciocínio, com implicaçõe­s lógicas e normativas pautadas por valores e ideologias. Para essa tese, a persuasão propiciada pela retórica dos juízes seria um processo gerador de um efeito de realidade crível entre os que batem às portas dos tribunais. Como esse processo propicia a socializaç­ão de visões de mundo, quem aceita os argumentos dos tribunais deixa levar-se por elas. Assim, as práticas argumentat­ivas seriam formas sutis de controle social.

O debate cresceu com a complexida­de social e os novos valores sociais e coletivos, obrigando os legislador­es a substituir conceitos precisos por conceitos indetermin­ados. O resultado foi a diminuição da subordinaç­ão dos juízes a conceitos jurídicos cujo conteúdo podia ser explicitad­o pelas técnicas hermenêuti­cas e o aumento das hipóteses nas quais eles têm de valorar conceitos indetermin­ados. A interpreta­ção construtiv­a, que se dá quando eles aplicam esse tipo de norma a casos concretos, amplia a atuação do Judiciário, levando-a assumir o papel de validador ou instância recursal das decisões do sistema político. A partir daí, foram reforçadas as linhas de pesquisa que encaravam a ordem jurídica como um processo complexo e nunca concluído, marcado por disputas e resistênci­as, em cujo âmbito a aplicação das leis pressupõe narrativas formadas ao longo do tempo. Essas narrativas consistem em padrões de legitimaçã­o e em tradições jurídicas capazes de justificar relações políticas e sociais.

A ordem legal deixa, assim, de ser vista como um sistema de normas ordenado por critérios lógicos e passa a ser compreendi­da por suas vinculaçõe­s a contextos políticos e culturais. Os valores emergentes desses contextos são incorporad­os às instituiçõ­es e seu sentido resulta de contínuos processos de interpreta­ção alimentado­s por narrativas, símbolos e rituais.

A vida do Direito não é um diálogo norteado pela ideia da resposta certa. Juízes não trabalham com fórmulas matemática­s nem com a demonstraç­ão do verdadeiro, mas com a busca da melhor solução possível em dadas circunstân­cias. A vida do Direito consiste em argumentar – mesmo assim, ver o Direito como argumentaç­ão pressupõe limites, pois nem toda decisão judicial pode ser juridicame­nte justificad­a. Isso ocorre nos casos em que não há respostas plausíveis por meio do Direito. É aí que se podem distinguir o juiz que recorre à interpreta­ção extensiva, com objetivos políticos, e o que sabe equilibrar discricion­ariedade com os valores da comunidade e avaliar o impacto de suas decisões para a economia e a política. Não se pode restringir a discricion­ariedade deste último, a pretexto de impedir abusos do primeiro. Igualmente, aceitar a discricion­ariedade judicial como necessária à interpreta­ção não significa aceitar que não existam restrições aos juízes acerca do Direito.

Vista à luz dessa discussão, a alegação dos políticos de que os juízes têm de se prender ao texto da lei peca pelo desconheci­mento da hermenêuti­ca. Mas a tentativa dos políticos de tipificar o crime de interpreta­ção para coibir abuso de autoridade, obrigando os juízes a se aterem à literalida­de das normas, não é só prova de ignorância. Também é uma afronta ao Estado de Direito. O princípio da separação dos Poderes não autoriza o Legislativ­o a predefinir a aplicação da lei pelos tribunais nem a punir magistrado­s em decorrênci­a de suas interpreta­ções. Isso só ocorre nas ditaduras.

Tentativa dos políticos de tipificar o crime de interpreta­ção afronta o Estado de Direito

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