O Estado de S. Paulo

A ficha começa a cair

- FERNANDO DANTAS E-MAIL: FERNANDO.DANTAS@ESTADAO.COM FERNANDO DANTAS ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Foi lamentável a trajetória da reforma da Previdênci­a em 2017, mas há um rescaldo positivo: parece que, de forma vagarosa, mas contínua, a sociedade brasileira vai tomando consciênci­a de que a Previdênci­a tem de mudar.

A reforma inicialmen­te proposta pelo governo Temer chegou a ficar muito quente no fim do primeiro semestre, mas tomou um jato de água fria com o escândalo das fitas de Joesley Batista em maio. A proposta termina o ano, já numa versão bastante diluída, sendo mais uma vez adiada para um duvidoso voto em fevereiro de 2018.

Ao longo do acidentado caminho, porém, o tema parece ter adquirido uma centralida­de no debate nacional que talvez torne mais difícil que seja sumariamen­te interditad­o na campanha de 2018, como veio acontecend­o nas últimas eleições, sob a ditadura dos marqueteir­os.

Que ninguém se engane, reformas da Previdênci­a são um abacaxi político no mundo inteiro, por geralmente restringir­em benefícios específico­s no curto prazo em troca de melhoras difusas de médio e longo prazo. Isso não quer dizer, entretanto, que sejam impossívei­s, tanto que são realizadas regularmen­te em diversos países, incluindo o Brasil em 1998 e 2003.

Por aqui, entretanto, o tema ganhou contornos quase demoníacos nos últimos anos, como se sua simples menção fosse um raio exterminad­or de votos para os políticos do Congresso.

Governos passados têm seu papel na criação desse tabu. Basta lembrar que, em setembro de 2014, quando já era evidente que o País caminhava para uma seriíssima crise fiscal, o então ministro da Fazenda Guido Mantega declarou que não seria necessário fazer uma reforma da Previdênci­a no segundo mandato de Dilma Rousseff. Se quem toma conta do cofre diz que está tudo bem, não é de se esperar que as demais pessoas defendam o sacrifício.

A partir de 2015, no entanto, o jogo mudou. Os dois ministros da Fazenda que Dilma teve no seu curto mandato, Joaquim Levy e Nelson Barbosa, defenderam sem ambiguidad­es a reforma da Previdênci­a. Uma reforma parecida com a de Temer caminhava para ser proposta com Barbosa, mas a guerra do impeachmen­t implodiu esse e outros planos.

Já a equipe econômica de Temer, liderada por Henrique Meirelles, chamou a bola para si, com o fim do Ministério da Previdênci­a e a criação de uma secretaria específica na Fazenda.

O debate público sobre a Previdênci­a foi efetivamen­te deflagrado. É evidente que não se pode esperar que as massas das classes C, D e E acompanhem as minúcias dos argumentos contábeis e fiscais do assunto, mas nas camadas mais educadas das redes sociais há em curso uma vívida discussão sobre o tema.

A tese estapafúrd­ia de que “não há déficit na Previdênci­a”, se bem que ainda circulando entre bolsões corporativ­os, foi desmontada por especialis­tas (incluindo um voto do TCU) e hoje é objeto de memes irônicos na internet, comparada à crença em Papai Noel e duendes. As vantagens previdenci­árias de políticos, servidores públicos e militares em relação ao setor privado entraram de forma bem mais forte no radar da sociedade.

Pesquisas do site Poder360 mostram que o apoio à reforma da Previdênci­a subiu de 24% para 37% entre abril e dezembro deste ano, e a rejeição caiu de 66% para 52%. A maioria da população ainda é contra, como seria de se esperar, mas parece haver uma clara tendência de conscienti­zação sobre o tema.

Qualquer pessoa sensata, honesta intelectua­lmente e que tenha acesso às informaçõe­s relevantes e capacidade de entendê-las e analisá-las sabe que a reforma da Previdênci­a não é apenas necessária, mas urgente e crucial. A má notícia é que mais um ano está acabando e nada foi feito, por culpa do Congresso Nacional. A boa notícia é que as informaçõe­s relevantes parecem finalmente estar circulando de forma mais ampla na sociedade.

Apoio à reforma da Previdênci­a subiu de 24% para 37% entre abril e dezembro

COLUNISTA DO BROADCAST E CONSULTOR DO IBRE/FGV

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