O Estado de S. Paulo

De macacos às guerras, o mestre do vazio Yoshi Oida volta ao Brasil

Ator e diretor, que Peter Brook considera ser seu capital humano mais valioso, o japonês estreia ópera inspirada em obra de Gustav Mahler

- Leandro Nunes

A correria de São Paulo não parece ser compatível, nem convidativ­a para um senhor japonês de 84 anos. A poluição que degrada, silenciosa­mente, aos pulmões de quem mora na cidade parece ser incapaz de obstruir a visão de um artista que acredita ter nessa mesma metrópole a arte mais viva que poderia existir em terras tropicais. Talvez ele não enxergue alguma coisa, ou talvez veja algo além. No sábado, 16, o mestre da atuação Yoshi Oida, radicado na França e parceiro valioso do encenador britânico Peter Brook, estreia A Canção da Terra, no Sesc Pinheiros. Em conversa com o Estado, ele falou sobre macacos, a onda de ataques nos EUA e na Europa, e qual o lugar possível para ser artista neste século.

A chegada apressada ao local da entrevista, bem no ritmo paulistano, não fazia jus ao compasso do entrevista­do. Em 1968, quando Oida conheceu Brook na montagem de A Tempestade, nenhum outro ator do elenco conseguiu surpreende­r o diretor após o pedido de imitar elementos como água e fogo. Enquanto todos ficavam se contorcend­o estranhame­nte, o pequeno ator japonês sentou-se e permaneceu imóvel na posição de Buda. Nos anos que se seguiram, Oida brilhou e rebrilhou ano após ano, desde o clássico Mahabharat­a, que retratava uma guerra épica entre duas famílias indianas, até Interrogaç­ões, que desembarco­u em São Paulo em 1999, sua primeira vinda ao Brasil. Para ele, o amigo Peter é a união de uma busca em comum, construída através dos tempos. “Fazer teatro com ele é tentar buscar o mistério, a beleza e, por vezes, a violência. Quando começamos a trabalhar juntos, o desejo era criar e não só imitar algo.”

A segunda visita foi na direção de As Criadas, em 2001, estrelada pelo coreógrafo carioca Ismael Ivo e com o bailarino africano Koffi Kôkô, na época em que o autor Jean Genet exigia em sua dramaturgi­a que o elenco deveria ser masculino. “Os artistas do Brasil têm uma energia muito interessan­te. O Ismael é um desses, ele é muito esperto e inteligent­e”, conta. Esse conflito de classe deflagrado pelo autor francês na peça aponta, de alguma maneira, para o desarranjo macrossoci­al anunciado nos poemas antibélico­s de Wilfred Owen, que morreu em ação na Primeira Guerra Mundial. A obra foi transforma­da na ópera War Réquiem, que Oida estreou na França este ano. O país, devastado por mais de 14 atentados que deixaram mais de 200 mortos, desde 2015, assusta quem precisa encarar a rotina sem a poesia como ofício. Aprumado no sofá, o morador da capital francesa toma um período de silêncio e reflete que é a urgência da vida que impõe sua realidade capaz de abocanhar o prazer de viver. Mesmo assim, existe um espaço, íntimo, seja você artista ou não, em que é possível proteger-se de uma extinção da sensibilid­ade. “A paz é altamente utópica. As guerras servem e serviram para muitos interesses. Desde os macacos, que resolviam seus conflitos em lutas, até nós, os seres humanos, a guerra sempre foi um tipo de negociação pela força. Isso não significa que devemos aceitar o mal, mas tentar encontrar uma pequena paz dentro de nós. A arte não deveria ser, necessaria­mente, algo político, assim como não deveria ser apenas um show, ou evento, mas uma busca para reconhecer o mistério. E o artista também deve descobrir sua pequena paz, escondida dentro de si.”

Essa fluência subjetiva não está presente no pai de A Canção da Terra. Num jardim japonês, o homem retorna da montanha em que estava confinado, para a família, após a morte da filha. Aqui, Oida se apropria da melancolia de Mahler para retomar um questionam­ento existencia­l tendo a natureza no horizonte. Mais uma vez, ele declara estar encantado com os artistas brasileiro­s, entre eles músicos de origem japonesa do Instituto Fukuda.

Por fim, quando questionad­o sobre um hábito ou ritual diário que faça Yoshi Oida ser quem ele é, o ator, mais uma vez, recorre a alguns segundos de silêncio antes de responder. “Quando acordo, preparo um chá, verde, seguro a xícara com as duas mãos, sinto o calor, o aroma e em seguida provo e percebo seu sabor. Começo o dia ativando meus cinco sentidos. Meu corpo é meu amigo, então preciso alimentá-lo bem.”

A arte não deveria ser, necessaria­mente, algo político, assim como não deveria ser só um show, ou evento, mas uma busca para reconhecer o mistério”

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PATRICIA CRUZ /ESTADÃO Em casa. Em 1999, artista apresentou a peça ‘Interrogaç­ões’, e em 2001 dirigiu Ismael Ivo na versão de ‘As Criadas’
 ?? NICOLAU SPADONI ?? Brasil. Ópera une a obra do checo com poemas chineses
NICOLAU SPADONI Brasil. Ópera une a obra do checo com poemas chineses

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