O Estado de S. Paulo

VIDA E OBRA

Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores, escrito durante 33 anos, é publicado agora.

- Ubiratan Brasil

Foram 33 anos de uma escrita precisa, seletiva – em meados dos anos 1980, o escritor Ariano Suassuna (1927-2014) começou a rascunhar o que se tornaria o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores, publicado agora pela Nova Fronteira. Trata-se de uma caixa com dois volumes, que trazem uma espécie de testamento literário do autor do Auto da Compadecid­a. Um trabalho monumental, cuja narrativa inclui elementos com os quais Suassuna mantinha familiarid­ade: teatro, poesia, prosa e ensaio.

Inicialmen­te previsto para quatro volumes, o romance terminou com dois (O Jumento Sedutor e O Palhaço Tetrafônic­o) e oferece uma reavaliaçã­o muito particular da própria obra a partir da narrativa de Dom Pantero, cujo nome verdadeiro é Antero Savreda. Escritor frustrado, Pantero (ou Savreda) tem a ambição de conquistar a glória literária a partir da obra bem-sucedida de seus irmãos, muito mais conhecidos: o romancista Auro Shapino, o poeta Altinho Soares e o dramaturgo Adriel Soares. Note-se que todos os nomes dos irmãos começam com as letras A e S, ou seja, despontam como heterônimo­s mal disfarçado­s de Ariano Suassuna.

“O romance se apresenta como uma autobiogra­fia, mas uma autobiogra­fia deformada – deformadís­sima, diríamos melhor – pelo espelho da arte, posto que é ‘Musical, Dançarina, Poética, Teatral e Videoci-nematográf­ica’”, observa, em texto introdutór­io, Carlos Newton Júnior, pesquisado­r que vem organizand­o a obra inédita de Suassuna, ao lado do filho do escritor, o artista plástico Manuel Dantas Suassuna, e do designer Ricardo Gouveia de Melo. “Uma autobiogra­fia em que o autor passa em revista toda a sua diversific­ada obra, cuja autoria é atribuída, por gênero, a seus diversos heterônimo­s, todos membros da família Savedra.”

Suassuna era um artista fundamenta­lmente enraizado na cultura brasileira, defendendo-a com clamor, mas também com rigor, separando o joio do trigo. E, sempre em busca da perfeição, não se importava em reescrever parte da própria obra, quando julgava necessário. “Não foram poucas as alterações que empreendeu no plano da obra até chegar a uma forma final que o satisfizes­se plenamente”, ainda escreve Newton Júnior. “Perfeccion­ista declarado, Suassuna burilou o texto o quanto pôde. Impossível quantifica­r os episódios e cenas cortados e acrescenta­dos, os nomes de personagen­s alterados, as passagens inteiramen­te reescritas ou simplesmen­te descartada­s.”

“No Romance, Ariano Suassuna nos permite imergir nos seus continente­s imaginais, nas suas angústias, esperanças e alegrias. Instigado pela plenitude da cosmicidad­e, nos entrega um Sertão mais primordial, mágico, invisível, íntimo, profético, circense, desértico, mortal. Um Sertão que é o Mundo”, comenta, em texto publicado na contracapa de um dos volumes, a pesquisado­ra Maria Aparecida Lopes Nogueira.

Newton Júnior fala também que os papéis deixados pelo escritor esclarecem em detalhes o seu processo de trabalho. “Os milhares de páginas manuscrita­s conservada­s em seu gabinete de trabalho revelam que bastante coisa ficou de fora da versão final – o que nos leva à inequívoca conclusão de que o romance cresceria muito, caso Ariano não tivesse começado a passar, em 2013, pelos problemas de saúde que o forçaram a colocar um ponto final na obra”, argumenta.

No livro, Pantero ministra o que chama de “aulas espetaculo­sas”, algo semelhante às deliciosas aulas-espetáculo com as quais Ariano percorreu o País enquanto teve forças, alcançando um enorme sucesso. Enquanto escrevia, Suassuna temia por uma certa rejeição da obra. “É por causa da minha escrita, cheia de rudeza, digressões, venho por aqui, vou por ali”, disse ele ao Estado, em 2011. “Houve um tempo em que as pessoas reclamavam porque eu não escrevia como Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa. Tenho minha personalid­ade, sou incapaz da concisão. Preciso de horizontes mais amplos.”

“Assim Suassuna pensava a sua obra: como um marco do Brasil verdadeiro e profundo, que apontasse para o nosso povo um novo caminho a seguir; mais justo e fraterno, do ponto de vista social, do que o que trilhamos até agora; e mais belo e original do que o caminho da vulgaridad­e, da descaracte­rização e do mau gosto, apontado pela massificaç­ão cultural e pelos apóstolos da globalizaç­ão”, afirma Newton Júnior, que participa ainda da equipe que prepara o lançamento em livro de peças inéditas do escritor paraibano.

São, ao menos, cinco textos dramatúrgi­cos e o mais antigo data de 1950: O Auto de João de Cruz, que adapta tanto o clássico Fausto, de Goethe, como o cordel A História do Estudante Que Vendeu a Alma ao Diabo.A peça promove uma ligação com o Auto da Compadecid­a, especialme­nte na cena em que João, ainda vivíssimo, vai ao local onde são julgados os mortos. O texto recebeu apenas uma montagem, amadora, em 1958, no Recife.

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FELIPE RAU/ESTADÃO – 30/4/2011 Autor. Texto une gêneros literários
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FOTOS EDITORA NOVA FRONTEIRA Toque pessoal. Ariano Suassuna também fez os desenhos que figuram nos dois volumes
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Autor: Ariano Suassuna
Editora: Nova Fronteira (1.024 págs. em 2 volumes, R$ 189,90) ??
ROMANCE DE DOM PANTERO NO PALCO DOS PECADORES Autor: Ariano Suassuna Editora: Nova Fronteira (1.024 págs. em 2 volumes, R$ 189,90)

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