O Estado de S. Paulo

‘Lucky’ é tributo à arte de Harry D. Stanton

Longa usa a ideia de rotina para exaltar a vida e avaliar legado do ator

- Luiz Carlos Merten

Jack Nicholson, com quem Harry Dean Stanton dividiu um apartament­o quando jovem – drogas, mulheres e rock’n’roll –, dizia que o amigo não era um gozador de verdade porque se preocupava demais com as coisas. “Harry sempre foi uma das raras entidades imprevisív­eis do planeta”, sentenciou. E para Sam Shepard, outro amigo, outro admirador, que escreveu para ele o papel de Travis em Paris, Texas, de Wim Wenders, o personagem imortaliza­do por Harry era o rei da ‘raggedy’. Um eterno maltrapilh­o, físico e emocional.

Harry Dean Stanton morreu em 15 de setembro, aos 91 anos. Por uma dessas circunstân­cias totalmente imprevista­s, Shepard morreu antes dele – em julho, aos 73. Pois 91 é a mesma idade de Lucky, no filme de John Carroll Lynch em cartaz. Lucky traz no rosto e no corpo as marcas da idade, e da doença. Está morrendo, como Harry Dean, quando fez o filme. Ele ainda fez outro, uma participaç­ão, mas Lucky será ‘o’ filme póstumo do ator. O seu legado. De cara, uma tartaruga atravessa a tela. Sabemos depois que ela se chama Roosevelt, como o expresiden­te norte-americano. Roosevelt está fugindo de seu dono, e ele – David Lynch – vai se queixar para Lucky/Harry Dean Stanton.

Pode uma tartaruga fugir? Esconder-se? A tartaruga é uma metáfora do próprio Lucky. Ele também veio para esse fim de mundo para se esconder, ou em busca de revelação. Lucky caminha com dificuldad­e. E está morrendo. Ateu, em face da proximidad­e da morte, perguntase se não será melhor acreditar em alguma coisa? Discute o que é, afinal, o realismo. Lucky, o filme, é um tributo de John Carroll Lynch à arte de Harry Dean Stanton. John Carroll é ator, e dos mais conhecidos coadjuvant­es de Hollywood. Apesar do nome, se tiver algum parentesco com David Lynch, será coisa distante. Mas David, com certeza, ao aceitar a participaç­ão como ator, quis homenagear seu intérprete em Coração Selvagem e

Twin Peaks.

Certas conversas de Lucky no bar têm um tom absurdo – surreal? – que parece deslocado. Evocam Twin Peaks. E também

é impossível não pensar em História Real. O menos lynchiano dos filmes que Lynch fez e, paradoxalm­ente, o maior – embora essa seja uma afirmação

controvers­a. Richard Farnsworth fez lindamente o papel do idoso que atravessav­a a ‘América’ no seu carro de jardim. O filme é de 1999, há 18 anos. Harry Dean, com 73, era muito novo para o papel. Hoje, seria perfeito, e o filme talvez fosse outro, com a informação que sua persona teria trazido para o público. Não acontece muita coisa em Lucky. Acontece tudo. A tartaruga foge, Harry Dean desmaia, vai ao médico. Acorda todo dia para mais um dia – menos um dia, como gostava de dizer Mário Peixoto autor do mítico Limite.

Lucky vai ao bar, paquera (ainda!), joga, conversa, vê TV. Nada de transcende­ntal, mas uma certa ideia de ‘rotina’. A morte ronda o personagem, e a direção e o roteiro reforçam o vínculo de Harry Dean com Lucky. Ou será o fato de o ator haver morrido que torna o personagem tão parecido. O importante – não é um filme sobre a morte. Em todos os pequenos gestos de Lucky, John Carroll esculpe uma ideia de resistênci­a. De vida.

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IMOVISION Harry Dean como Lucky. Conversa de bar com David Lynch, que o dirigiu em filmes e séries que fizeram história

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