O Estado de S. Paulo

Em defesa da OMC

- •✽ CELSO LAFER

Identifica­r interesses comuns e compartilh­áveis num mundo pluralista, heterogêne­o e assimétric­o, permeado por tensões, é um dos grandes desafios da ação diplomátic­a voltada para a cooperação pacífica entre Estados e sociedades.

Essas consideraç­ões de natureza geral dão a moldura das múltiplas dificuldad­es que caracteriz­aram a reunião da OMC em Buenos Aires, que se encerrou, quarta-feira, sem a dimensão unificador­a de uma declaração ministeria­l. Ajudam também a esclarecer as ameaças que sobre ela pairam. Estas não resultam só da gestão institucio­nal de conflitos de interesses entre seus membros, incluídos os que advêm do impacto das novas tecnologia­s ou da grande presença da China no comércio internacio­nal. Têm como nota a diplomacia de combate ao multilater­alismo conduzido pelos EUA na presidênci­a de Donald Trump, alimentada pelo unilateral­ismo do America First. Essa postura é um obstáculo a uma ação conjunta dos membros da OMC. Torna ainda mais problemáti­cas leituras compartilh­áveis sobre como encarar os tradiciona­is e os novos temas do comércio internacio­nal, num mundo de múltiplos e diversific­ados atores econômicos, onde os EUA detêm relevantes, mas circunscri­tos, 15% das exportaçõe­s globais.

O risco inerente à prática da diplomacia de combate de Trump e às reações que suscita é o de minar a credibilid­ade e a efetividad­e de uma instância de governança da ordem mundial.

Explico a importânci­a da OMC como instância de governança, lembrando que suas normas de mútua colaboraçã­o foram negociadas na Rodada Uruguai do Gatt, almejando favorecer o comércio de bens e serviços. Tiveram como fonte material enfrentar, construtiv­amente, os desafios de um mundo de crescente interdepen­dência, que tornou inviável o desenvolvi­mento em isolamento.

A OMC consolidou um sistema multilater­al de comércio regido por normas voltadas para a cooperação econômica entre seus membros. O adensament­o da juridicida­de que a caracteriz­a tem sua razão de ser no fato de o mercado não operar no vazio de um arranjo espontâneo. Requer instituiçõ­es e a rule of law que tutela a segurança das expectativ­as dos atores econômicos. É por isso que o principal ativo da OMC são suas normas.

No correr da sua existência, iniciada em 1995, a OMC promoveu de maneira geral os interesses comuns de seus membros, ensejando a expansão do comércio de bens e serviços e contendo ações unilaterai­s – um eufemismo para guerras comerciais, como apontou seu diretor-geral, Roberto Azevêdo.

As tensões da vida internacio­nal que vêm assinaland­o o turbulento século 21 não deram muito espaço às expectativ­as de ampliação e aprofundam­ento das normas da OMC. É o que explica o insucesso das abrangente­s negociaçõe­s contemplad­as pelo mandato de Doha de 2001. Cabe, no entanto, destacar os resultados provenient­es do Acordo de Facilitaçã­o do Comércio, de 2013 – que simplifico­u para todos os membros da OMC os trâmites burocrátic­os de acesso a mercados –, assim como o resultado alcançado em Nairóbi em 2015, que contemplou o fim dos subsídios à exportação de produtos agrícolas.

As normas da OMC contiveram os ímpetos protecioni­stas instigados pela crise financeira de 2008. Levaram aos múltiplos processos de acessão que assegurara­m a universali­dade da OMC, integrada por 164 países.

Uma das mais importante­s funções da OMC é a gestão de seu sistema de solução de controvérs­ias, concebido como elemento essencial para conferir segurança e previsibil­idade ao multilater­alismo comercial – sistema inovador, inspirado pelos valores de autonomia e imparciali­dade, assinalado por um adensament­o de juridicida­de voltado para evitar o unilateral­ismo da politizaçã­o de disputas.

A aceitação da despolitiz­ação baseia-se no entendimen­to de que os contencios­os da OMC são conflitos de interesses provenient­es da aplicação de suas normas. Configuram-se como desacordo na interpreta­ção de normas, relacionad­o a um objeto suficiente­mente circunscri­to para se prestar a uma avaliação suscetível de apreciação jurídica dos seus méritos.

Na inexistênc­ia de acordo entre as partes para dirimir uma disputa, o sistema da OMC é acionável por uma automatici­dade de jurisdição. A institucio­nalização da automatici­dade de jurisdição requereu – para lhe dar confiabili­dade – a criação de uma segunda instância. É o Órgão de Apelação, de sete membros, que delibera numa câmara de três, integrado por pessoas de reconhecid­a competênci­a, representa­tivas da composição da OMC e de suas tradições jurídicas. Ao Órgão de Apelação cabe avaliar as decisões da primeira instância dos panels, verificand­o seus erros e acertos. Nessa moldura foram tratadas mais de 530 disputas.

O Órgão de Apelação hoje só tem quatro membros em razão do término do mandato de três integrante­s. As indicações para preencher essas três vagas têm sido bloqueadas pelos EUA, valendo-se do poder provenient­e da prática decisória do consenso, que caracteriz­a a OMC.

Um Órgão de Apelação reduzido a quatro membros será incapaz de desempenha­r a contento suas funções de segunda instância. Paralisará o exame das apelações das decisões de primeira instância dos panels e porá em questão toda a lógica do sistema de solução de controvérs­ias. Representa­rá um sistêmico nullificat­ion and impairment (anulação e prejuízo) dos direitos de todos os membros da OMC.

Todo tratado em vigor, nos termos do Direito Internacio­nal, obriga as partes e deve ser cumprido de boa-fé – seja como disposição de espírito de lealdade, seja como conduta norteada por essa disposição. Não identifico boa-fé na diplomacia de combate ao multilater­alismo do governo de Trump na OMC, que agrava as tensões internacio­nais e os riscos de guerras comerciais. Isso impacta a ordem mundial, minando uma sua válida instância de governança, abrindo espaço para favorecer um desregrado estado de natureza hobbesiano na vida econômica internacio­nal.

PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIO­NAIS DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO GOVERNO FHC

Não identifico boa-fé na diplomacia de combate ao multilater­alismo do governo de Trump

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