O Estado de S. Paulo

As duas faces da nossa miséria

- •✽ LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

Do ponto de vista democrátic­o, o recente ciclo das esquerdas latino-americanas no poder, entre elas o petismo, não foi particular­mente entusiasma­nte. Em seu conjunto, em grau maior ou menor, não souberam dirigir-se a toda a sociedade, ao optarem por uma ideia substantiv­a de democracia, hostil à dimensão que reputam “meramente” formal, fazendo-a acompanhar por estratégia­s discursiva­s fortemente divisivas, próprias de percursos já cumpridos, sem êxito, no passado.

O caso extremo, que, no entanto, chegou a ter pretensões de se tornar a matriz de transforma­ções revolucion­árias em boa parte do Continente, terá sido o bolivarian­ismo venezuelan­o, desde o começo tingido por um autoritari­smo de feição militar que, recorrendo a instrument­os plebiscitá­rios e arregiment­ando uma parte da população – por certo aquela socialment­e mais destituída –, foi capaz, como ainda hoje é, de obter sucessivas vitórias eleitorais, por bem ou por mal.

Nenhuma dúvida, especialme­nte durante os sucessivos mandatos de Hugo Chávez, de que, manipulaçõ­es à parte, o regime contou com adesão majoritári­a. Um dos requisitos da democracia, assim, parecia plenamente preenchido, a saber, o respeito à vontade majoritári­a na constituiç­ão dos governos. Menos ou nada respeitado­s, ao contrário, ficavam outros requisitos igualmente essenciais, como o respeito aos direitos da minoria, que do ponto de vista formal deve ter a possibilid­ade de se tornar governo em eleições disputadas em razoáveis condições paritárias.

O mau padrão bolivarian­o, crescentem­ente cultivado a partir da primeira vitória de Chávez, ainda no final do século passado, deitou raízes e se espalhou, conquistan­do adeptos até mesmo entre intelectua­is. Chávez, naturalmen­te, surgia como a encarnação – sem restos – de todo o povo. Um redivivo pai fundador, capaz de recolocar o Estado sobre novas bases e de encaminhar transforma­ções supostamen­te socialista­s à altura do século 21. Em certo momento, a busca da “felicidade social” chegou a se institucio­nalizar na forma de um ministério. Por óbvio, quem se opusesse – ou se opõe – aos desígnios oficiais só podia ser visto como um sabotador ou um agente do imperialis­mo. Um “esquálido”, na novilíngua chavista.

A Argentina dos Kirchners e, em tom mais brando, o Brasil de Lula reiteraram o novo padrão retórico. Por certo, sociedades mais complexas do que a venezuelan­a requerem objetivame­nte um discurso público menos marcado pelo maniqueísm­o. Apesar disso, o recurso lulista da primeira hora consistiu em brandir a “herança maldita” dos anos FHC, bordão repetido infinitas vezes desde sempre, a ponto de borrar o aspecto formalment­e exemplar da transição de um governo para outro, em 2003. Opor-se a Lula era pertencer, automatica­mente, à “direita neoliberal”, um espantalho convenient­e sob cuja sombra se iria gradualmen­te congelar a imaginação política do País nos moldes estatistas que no passado presidiram, à direita e à esquerda, seus surtos de modernizaç­ão.

A “linguagem do ódio” fez sua potente reaparição em nossa história política, minando a constituiç­ão possível de uma cultura cívica minimament­e compartilh­ada. Não se chegou, como na Venezuela, ao cinismo de promulgar pretensa legislação constituci­onal contra o ódio, depois de semeá-lo abundantem­ente; mas, tal como lá, atribuiu-se aos adversário­s o espírito da “casa grande”, em pânico diante dos avanços – mais proclamado­s do que reais – da “senzala”. E esse constitui agora o legado pior do petismo, sua peculiar herança maldita, a qual, recortando de alto a baixo nossa sociedade, acabou por gerar seu oposto simétrico na figura – agora, sim – de uma direita primitiva, cuja expressão política mais evidente simula portar um fuzil em suas intervençõ­es públicas – num país devastado pela inseguranç­a e pelas mortes violentas.

Na verdade, assim foi que “nos atualizamo­s”, paradoxalm­ente, em relação a algumas das correntes mais perversas que se agitam mundo afora. A começar por Trump, algo mudou na extrema direita contemporâ­nea, dando-lhe não só confiança agressiva, como também capacidade de explorar medos, frustraçõe­s e ressentime­ntos. Nem mesmo nos Estados Unidos, uma democracia liberal plurissecu­lar, passou inobservad­a a mudança genética da velha direita republican­a, a ponto de fazer um político solidament­e conservado­r como o senador John McCain protestar contra a retórica de “solo e sangue” que se afirma contra as marcas de origem de seu país. Ou o contestadí­ssimo Georg W. Bush lamentar a degeneraçã­o do nacionalis­mo em nativismo vulgar. Para não falar dos ventos xenófobos que varrem a velha Europa, em que no tronco enfermo do antissemit­ismo agora se enxerta a doença islamofóbi­ca.

Entre nós, ainda não é possível avaliar o impacto eleitoral desta “atualizaçã­o”, com sua explosiva mistura de trevoso conservado­rismo comportame­ntal e liberalism­o econômico radical, se é que se levará a cabo esta outra mudança genética na extrema direita nativa, originaria­mente portadora de sua própria versão de capitalism­o autoritári­o e nacionalis­ta. Da mesma forma, observando o polo simétrico, não sabemos até onde a sociedade resistirá à reproposiç­ão do populismo radicaliza­do “de esquerda”, com o qual voltou a girar pelo País o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para impor como fato consumado uma candidatur­a presidenci­al às voltas com conhecidos e crescentes problemas judiciais.

A política democrátic­a requer que tais ideias extremas sejam paulatinam­ente postas nas margens da arena pública. No rigor do termo, são excêntrica­s e constituem tentativas desastrada­s ou de retorno a um passado mítico de lei e ordem, ou de fuga para um futuro com mais igualdade (admitamos para fins de argumentaç­ão), mas, certamente, menos liberdade. Derrotálas é o desafio que a vasta e variada área dos democratas deve continuame­nte se impor.

Derrotar as ideias extremas é o desafio que todo democrata deve continuame­nte se impor

TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil