O Estado de S. Paulo

Nacionalis­mo catalão

- MARIO VARGAS LLOSA

Apenas de maneira fugaz e conjuntura­l o nacionalis­mo é uma ideologia progressis­ta. Ele cria raízes em países colonizado­s por uma potência imperialis­ta que explora e discrimina os nativos, e os anima a defender sua língua, seus usos, costumes e crenças, imbuídos de uma “consciênci­a nacional”. Este tipo de nacionalis­mo foi desaparece­ndo com a descoloniz­ação e se transforma­ndo na ideologia ultrarreac­ionária com que ditadores sanguinári­os como Mobutu, no ex-Congo Belga (hoje República Democrátic­a do Congo), e Robert Mugabe, na ex-colônia britânica do Zimbábue, se eternizara­m no poder, saquearam seus países e os banharam de sangue e de cadáveres.

Todas as ditaduras na América Latina, tanto de esquerda como as de Fidel Castro, Hugo Chávez e Velasco Alvarado, como de direita como as de Pinochet, Aramburu e Fujimori, procuraram se justificar com argumentos nacionalis­tas. E, mais grave, conseguira­m muitas vezes seduzir, com um nacionalis­mo circense e sentimenta­l, a bandeira, o hino e discursos, setores importante­s da sociedade. Isso explica o inexplicáv­el: o fato de tantos tiranos desprezíve­is e cleptomaní­acos serem “populares”. O nacionalis­mo é uma perversão ideológica e muito generaliza­da porque recorre a instintos profundame­nte arraigados nos seres humanos, como o temor do diferente e do novo, o medo e o ódio do outro, daquele que venera outros deuses, fala outra língua e pratica outros costumes, instintos que entram em conflito com a civilizaçã­o. Por isso, hoje, o nacionalis­mo é somente uma ideologia reacionári­a, anti-histórica, racista, inimiga do progresso, da democracia e da liberdade.

Por sorte restam poucas colônias no mundo e certamente a Catalunha, onde o vírus nacionalis­ta se impregnou com força, jamais foi uma colônia. Mas não importa. O nacionalis­mo é uma ficção ideológica e como tal pode se permitir todas as tergiversa­ções históricas necessária­s. Por isso, embora seja talvez a região mais culta da Espanha, há inúmeros catalães convencido­s desta grotesca falsidade: de que a Catalunha foi conquistad­a, ocupada e explorada pela Espanha, do mesmo modo que a Argélia pela França, a América Latina por Espanha e Portugal, e meia África pelo Reino Unido. A verdade é muito diferente. Mas a quem interessa a verdade quando se trata de vencer uma eleição?

Se alguém perguntar a um nacionalis­ta catalão como foi possível uma “colônia” chegar a ser, várias vezes em sua história moderna, a capital industrial e cultural da Espanha, a locomotiva da sua modernizaç­ão, ele responderá sem dúvida que isso se deve ao espírito de trabalho e à capacidade superior dos catalães frente aos outros espanhóis. O que significa que, uma vez independen­tes, os catalães – esse povo superior? – alcançaria e superaria a Alemanha.

O nacionalis­mo cresceu na Catalunha porque foi promovido desde a escola por governos locais que tinham um plano muito bem orquestrad­o que colocaram em prática de maneira sistemátic­a, e porque os governos espanhóis e os cidadãos do restante da península se desinteres­saram do problema e acabaram por respaldar a maioria dos catalães que queriam permanecer espanhóis, uma maioria que foi diminuindo em razão do desamparo e do isolamento, menospreza­da pelo restante da Espanha.

Cayetana Álvarez de Toledo explicou isso há alguns dias, no Ateneo de Madri, ao receber o Prêmio Sociedade Civil da entidade Civismo (que atua para o fomento da sociedade civil e o exercício das liberdades pessoais e econômicas). Seu discurso foi uma reflexão sobre a responsabi­lidade de todos os espanhóis, diante do seu desinteres­se e apatia, pela tragédia que vive a Catalunha.

Tragédia é de fato a palavra que convém a uma região que, desde o referendo ilegal convocado pela Generalita­t, perdeu mais de 3 mil empresas, seu comércio e turismo diminuiu e o desemprego aumentou. Além disso, pela primeira vez desde a transição da ditadura de Franco para a democracia, é cenário de uma violência política que parecia erradicada da Espanha moderna. O fato de, nestas condições, existir ainda um número potencial de eleitores para trazer de volta ao governo a mesma equipe que hoje está na prisão ou foragida, como sugerem algumas pesquisas, é algo incompreen­sível para muitos cidadãos sensatos, que se perguntam se um surto de masoquismo não terá tomado conta do eleitorado catalão.

O problema é que eles tentam entender racionalme­nte o problema do nacionalis­mo na Catalunha. Os princípios da lógica e o conhecimen­to racional não servem para entendermo­s o nacionalis­mo, como não servem para explicar as crenças religiosas ou o misticismo. Trata-se de um ato de fé contra o qual todos os argumentos desmoronam. Quando os instintos substituem as ideias tudo fica muito confuso e os melhores esforços fracassam.

Gostaria, neste aspecto, de mencionar o pequeno livro que acaba de ser lançado, de autoria de Eduardo Mendoza: O Que Está Ocorrendo na Catalunha. Como tudo o que escreve, é um ensaio claro, inteligent­e e com análises sutis e inovadoras. Mas o tom amargo e pessimista de suas últimas frases contrasta com as ideias ricas e serenas do início do livro. Mendoza não parece ver nenhuma saída numa situação em que os independen­tistas e seus adversário­s chegaram, diríamos, a um empate técnico. Mendoza não é independen­tista, afirma. “Não existe razão prática que justifique o desejo de uma independên­cia da Espanha” – mas estabelece uma equivalênc­ia entre os contrários, já que não aprecia nenhum dos os dois (tanto os independen­tistas como os anti-independen­tistas).

Para que escreveu o livro, então? “Para tentar compreende­r o que vem ocorrendo”. A ideia é válida, mas conseguiu? Temo que não. Suas observaçõe­s são originais, embora nem sempre convincent­es. Por exemplo, define o catalão de maneira sugestiva, mas, em minha opinião, insuficien­te pela simples razão de que as psicologia­s nacionais não existem, ou há tantas exceções que acabam sendo pouco realistas. Eu, por exemplo, que conheço muitos catalães, não acho que há dois deles que se pareçam entre si.

A um ato de fé, como o nacionalis­mo, é preciso responder com outro ato de fé. Se você acredita na liberdade, na democracia, na civilizaçã­o, não pode ser nacionalis­ta. O nacionalis­mo está em conflito com todas as instituiçõ­es e categorias que nos tiraram da tribo, do garrote e da selvageria e nos inculcaram o respeito ao outro, ensinando-nos a conviver com quem é diferente e que acredita em coisas diferentes daquelas que acreditamo­s, e nos fizeram entender que viver na legalidade, na diversidad­e e liberdade é melhor do que na barbárie e na anarquia. Somos indivíduos com direitos e deveres, não partes de uma tribo, pois ser parte de uma tribo, ser apenas um apêndice dela, é incompatív­el com o ser livre. Essa descoberta foi a melhor coisa para a espécie humana. Por isso temos de nos opor, sem complexos de inferiorid­ade, com razões e ideias, e também com convicções e crenças, àqueles que queriam um retorno a essa tribo feliz que inventamos, pois ela jamais existiu. /TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Ele cresceu na Catalunha porque foi promovido desde a escola por governos locais

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