Sochi: política, propina e esporte
Escolhido para ser a base da CBF, balneário é permeado de escândalos de corrupção e se transformou em referência para eventos na Rússia de Putin
Do início da estrada, a vista dos picos nevados da estação de esqui de Krasnaya Polyana se contrastam com as imagens da praia e palmeiras de Sochi. Foi ali que, em 2014, a cidade organizou os Jogos Olímpicos de Inverno, transformando o balneário também em um destino para esportes como esqui. Mas para ligar a cidade banhada pelo Mar Negro à neve, a obra viária que foi construída acabaria sendo a estrada mais cara da história da Rússia.
Para fazer apenas 49 quilômetros de trajeto em duas pistas para carros e uma linha de trem, foram destinados US$ 8 bilhões (R$ 26,3 bilhões), valor superior ao que o Brasil gastou para erguer seus estádios para a Copa do Mundo três anos atrás. “Aproveite a vista. Essa é a estrada mais cara do mundo”, ironizou Ilya, motorista de um serviço de transporte que levou a reportagem do Estado pelo local.
A estrada liga Sochi ao topo de Krasnaya Polyana e, apesar da complexidade de seus mais de 60 túneis e pontes, poucos na cidade conseguem explicar o motivo pelo qual a obra passou de um orçamento inicial de US$ 2,8 bilhões (R$ 9,1 bilhões) para o preço final quase três vezes maior. O contrato sequer foi aberto para licitação e os trabalhos ficaram com duas empresas, ambos ligadas a aliados do presidente Vladimir Putin.
A estrada é apenas parte de um esquema que passou a ser considerado como exemplo do que uma cidade-sede não deve fazer como projeto olímpico. A transparência da obra, e de seus altos custos, nunca foi atestada.
A CBF decidiu transformar Sochi em sua base durante o Mundial de 2018, apontando para a infraestrutura existente, clima, facilidades entre o hotel e campo de treinamento como principais argumentos e a aparente tranquilidade local.
Mas Sochi é, acima de tudo, um projeto pessoal de Putin. O presidente russo tem a cidade como seu destino predileto na Rússia e decidiu que voltaria a dar a ela o mesmo status que tinha durante a era Soviética. Por décadas, foi em Sochi que a elite do Partido Comunista era enviada como forma de premiação por atos de bravura. Mas como muitas cidades da ex-URSS, Sochi chegou ao século 21 ultrapassada e parada no tempo. Para repaginá-la, foram destinados US$ 51 bilhões (R$ 167,7 bilhões)
até 2014. Depois disso, mais alguns milhões foram gastos para a Copa do Mundo.
O estádio que será usado para sediar cinco jogos da Copa, o Fisht, custou oficialmente US$ 779 milhões (R$ 2,5 bilhões) e também foi o local de abertura e encerramento da Olimpíada de 2014. Só para retirar o teto que existia para os Jogos de Inverno e adaptá-lo para o uso da Fifa, mais US$ 46 milhões (R$ 151,3 milhões) foram gastos.
Ao longo da obra, seu orçamento aumentar 14 vezes. O estádio é assinado pela Engeocom, empresa acusada de irregularidades pelo Tribunal de Contas da Rússia. A divisão de investigações da cidade de Sochi iniciou em 2012 um inquérito sobre os valores destinados à arena. Cinco anos depois, o caso ainda não foi concluído.
Hoje, a cidade não tem sequer um time de futebol. Ao Estado, o vice-prefeito de Sochi, Sergey Yurchenko, explicou que o objetivo depois da Copa é atrair times para disputar grandes partidas no local, além de seleções. “No futuro, não será apenas para o futebol. Mas também para entretenimento.”
Desde a Copa das Confederações, o estádio não foi usado, sob a justificativa de que teria de se preparar para 2018. “Nada ocorre ali”, comentou. Antes, foram apenas três amistosos. Questionado sobre o orçamento da cidade para a Copa do Mundo, o vice-prefeito não respondeu. Para ele, o investimento na Olimpíada e Copa está compensando. “Adoraríamos ter mais eventos como a Copa”, disse. Antes das obras, a cidade recebia cerca de 3 milhões de visitantes por ano. “Hoje, são mais de 6 milhões. Temos 20 mil pessoas por dia no Parque Olímpico durante o verão e, por ano, 250 eventos na cidade.”
Sochi abriga outras obras, algumas delas também arrolados em polêmicas administrativas. Estudo realizado por Alexey Navalny, advogado e político oposicionista ao governo de Putin e que pensa nas eleições do país, mostra um mapa das empresas que ganharam contratos para as obras na cidade – segundo ele, todas elas vinculadas a grupos aliados a Vladimir Putin.
No caso da arena de hockey e a pista de bobsled, o valor da construção ficou US$ 260 milhões (R$ 855 milhões) acima do preço de mercado. Elas foram realizadas por uma empresa de políticos da Sibéria que jamais tinham feito obras para arenas esportivas. Trata-se da Mostovik, que até Sochi tinha construído uma ponte em Vladivostok. Ela, porém, é propriedade do deputado Oleg Shilov.
A denúncia mostra que apenas três amigos de Putin receberam cerca de US$ 15 bilhões (R$ 49,3 bilhões) em contratos. Um deles era parceiro de artes marciais do presidente Putin e um dos homens mais ricos da Rússia, Gennady Timchenko.
Também foi beneficiado o instrutor de esqui do ex-primeiro-ministro, Dmitry Medvedev. A empresa que recebeu contratos para viabilizar uma das pistas de esqui foi a Rosengineering, criada por Dmitry Novikov, da federação de esqui e amigo pessoal de Medvedev.
Até a Igreja Ortodoxa, aliada a Putin, foi beneficiada nas obras de Sochi. Putin colocou seu chefe de gabinete, Vladimir Kozhin, para presidir uma fundação que iria recolher doações para renovar a igreja. O local, porém, acabou recebendo US$ 15 milhões (R$ 49,3 milhões) do orçamento olímpico, sob a justificativa de ser um “centro cultural e histórico” da cidade.
Falar da corrupção hoje em Sochi é um tabu. Nos anos que anteciparam os Jogos de 2014, procuradores chegaram a apontar que cerca de US$ 800 milhões (R$ 2,6 bilhões) poderiam ter sido desviados em propinas de obras. Até hoje, nenhum caso conseguiu avançar.