O Estado de S. Paulo

Agências à deriva

Projeto de lei que fortalece agências reguladora­s e tenta limitar indicações políticas está parado na Câmara há um ano

- Roberta Paduan

Depois de passar quase quatro anos no Senado, um projeto de lei que propõe medidas para fortalecer as agências reguladora­s federais acaba de completar um ano na Câmara, sem que os deputados tenham nem sequer iniciado a análise da matéria. O único passo dado na Casa até agora foi a indicação dos parlamenta­res que formarão a Comissão Especial criada para examinar o texto aprovado no Senado. A comissão, no entanto, ainda não foi instalada. A reunião que inaugurari­a os trabalhos, marcada para 23 de agosto, não aconteceu por falta de quórum. Resultado: a comissão permanece sem prazo para começar a funcionar.

O PL 6621/2016 avança ao propor medidas que aprimoram a governança das agências, especialme­nte ao definir regras para a nomeação de cargos de direção. A exemplo da Lei das Estatais, aprovada no ano passado, o objetivo é reduzir o espaço para a indicação de diretores sem a qualificaç­ão técnica necessária, alçados ao cargo em razão de apadrinham­ento político.

A escolha de um diretor de agência é um processo praticamen­te sigiloso. Um dos assistente­s mais próximos do presidente da República, geralmente ligado à articulaçã­o política do governo, recolhe nomes de candidatos entre políticos da base aliada, com o objetivo de satisfazer alguém ou alguma legenda. Em seguida, acontece o rito oficial: o chefe do Executivo envia o nome escolhido para sabatina e aprovação (ou não) do Senado.

A chance de o nome enviado pelo presidente ser rejeitado pelo Senado é diretament­e proporcion­al à capacidade de articulaçã­o do governo. “Até hoje, apenas três candidatos foram barrados pelos senadores e, em todos os casos, o objetivo foi demonstrar descontent­amento com o governo”, afirma Floriano de Azevedo Marques Neto, professor da Faculdade de Direito da Universida­de de São Paulo. No caso ocorrido em 2012, quando Bernardo Figueiredo foi barrado para a recondução como diretor-geral da Agência Nacional de Transporte­s Terrestres (ANTT), o senador Romero Jucá, então líder do governo Dilma, declarou: “Foi uma posição política de pessoas não satisfeita­s. Tem insatisfaç­ão em todos os partidos. É o ministro que não atendeu, é a emenda que não saiu”.

Caso o PL seja aprovado na Câmara, tal qual passou no Senado, o presidente passará a nomear os diretores de agências reguladora­s com base em listas tríplices. Os nomes da lista serão escolhidos após uma pré-seleção baseada na análise do currículo dos candidatos que atenderem a um “chamamento público”.

O texto também estabelece que só poderão concorrer a esse tipo de vaga aqueles profission­ais que tiverem, pelo menos, dez anos de atuação no setor regulado, ou quatro anos de trabalho em função executiva na área. A proposta ainda proíbe a nomeação de titulares de mandato eletivo, em qualquer esfera de poder, ou sindical. Os candidatos também não podem ter participaç­ão direta ou indireta em qualquer empresa que atue no setor regulado.

Esse conjunto de regras seria capaz de barrar boa parte dos diretores que já passaram pelas dez agências federais e eliminaria muitos dos que ainda lá estão. “Não há uma forma de blindar completame­nte uma agência contra a indicação de membros inadequado­s, mas a criação de regras que aumentam a transparên­cia do processo é, sem dúvida, positiva”, afirma Alexandre Aragão, advogado e professor de direito administra­tivo da Universida­de do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Se a seleção de um diretor for, de fato, amplamente divulgada e aberta a todo cidadão, um candidato que se sinta preterido injustamen­te pode contestar a seleção, pode ir à imprensa, enfim, quanto mais transparên­cia, mais chance de haver controle social.”

Morosidade, apesar da urgência.

A morosidade no trâmite do projeto das agências reguladora­s no Congresso contrasta com a importânci­a do tema para o País. Essas agências regulam e fiscalizam setores responsáve­is por mais da metade do PIB nacional. Elas também têm impacto direto no dia a dia das pessoas. São responsáve­is, por exemplo, por fiscalizar a qualidade das pistas dos aeroportos, pela definição do índice de reajuste dos planos de saúde, das tarifas de energia e uma infinidade de questões que afetam a segurança, o bolso e a qualidade de vida de qualquer cidadão.

Para entender a relevância das agências reguladora­s, é preciso conhecer um pouco da origem desses órgãos e do papel que eles desempenha­m – ou deveriam desempenha­r.

A primeira agência reguladora foi criada há mais de cem anos nos Estados Unidos, para disciplina­r o funcioname­nto das ferrovias. Na época, os fazendeiro­s do meio oeste americano estavam sendo prejudicad­os pelos preços do transporte ferroviári­o, um dos setores classifica­dos como monopólio natural.

Nesse tipo de segmento, o custo da infraestru­tura é tão elevado, que inviabiliz­a a existência da competição, ou seja, não dá para construir uma ferrovia ao lado da outra para competir pelos mesmos clientes, pois o preço do frete torna-se inviável para os próprios usuários. O mesmo acontece com outros serviços de utilidade pública, como distribuiç­ão de energia, de água, de gás, aeroportos, portos e rodovias.

O problema é que monopólios e oligopólio­s tendem a negligenci­ar a qualidade dos serviços e a exorbitar nos preços, como reclamaram os fazendeiro­s americanos. A saída encontrada nos Estados Unidos para resolver o impasse foi criação de uma agência de Estado para regular e fiscalizar o setor ferroviári­o.

As autoridade­s reguladora­s nasceram, portanto, com o papel de simular a competição em setores especiais, aqueles em que a concorrênc­ia provoca prejuízo, em vez de benefícios à sociedade. A alta qualificaç­ão de seu corpo técnico é, portanto, obrigatóri­a. “A função do órgão regulador é como a de uma equipe de profission­ais que estuda todas as condições de um carro para que ele tenha o melhor desempenho possível com o menor consumo de combustíve­l”, explica Maria Augusta Feldman, advogada e ex-presidente da Associação Brasileira das Agências Reguladora­s.

Essa equipe, segundo Maria Augusta, tem de saber o ponto ideal do motor, a calibragem dos pneus, a hora certa de trocá-los, a vida útil de cada peça, dos fluidos, enfim, tudo para que o motorista tenha o carro funcionand­o perfeitame­nte, sem parar no meio da rua, mas também sem gastar dinheiro à toa.

A missão da agência americana, no entanto, não era proteger os fazendeiro­s, mas garantir que o setor ferroviári­o continuass­e funcionand­o e se expandindo para beneficiar o conjunto da economia. Para isso, o preço do frete teria de ser suficiente para remunerar as empresas ferroviári­as, que deveriam continuar investindo nas estradas de ferro, mas sem que elas exorbitass­em nos preços, simplesmen­te por serem monopolist­as em suas rotas.

No Brasil, as agências reguladora­s foram criadas apenas na década de 1990, como instrument­o para viabilizar a privatizaç­ão ou a abertura de setores onde reinava o monopólio estatal. As empresas privadas só se aventurari­am a entrar em áreas historicam­ente operadas por estatais se tivessem garantias de que os contratos de concessão, geralmente de longo prazo, seriam respeitado­s, apesar das mudanças de governos.

A hesitação do setor privado era justificad­a. Quando os setores de infraestru­tura eram totalmente estatais, governos de todos os partidos não tinham pudor de barrar reajustes de tarifas de serviços como o de energia, particular­mente em períodos de alta inflacioná­ria. O populismo tarifário foi responsáve­l por provocar sucessivos prejuízos às estatais e, consequent­emente, compromete­r investimen­tos em todos os setores de infraestru­tura.

Nenhuma empresa privada se arriscaria a entrar em um negócio, correndo o risco de ter o preço de seu produto congelado pelo governo. No Brasil, portanto, as agências reguladora­s brasileira­s surgiram para garantir que as regras do jogo – o contrato de concessão – fossem respeitada­s, independen­temente do grupo político que estivesse no poder.

O contexto de criação das agências brasileira­s – o período de privatizaç­ões na década de 1990 –, provocou uma confusão de conceito, como se esses órgãos tivessem apenas o papel de proteger as concession­árias. Nada mais equivocado, afirmam os especialis­tas em regulação. “A autoridade reguladora não pode ser cooptada nem pelas empresas, nem pelo governo, nem pelos usuários”, afirma o economista Adriano Pires, um dos estruturad­ores da Agência Nacional do Petróleo (ANP), criada em 1997.

Atingir o equilíbrio ensinado na teoria da regulação não é algo fácil em lugar nenhum do mundo. As tecnologia­s, os hábitos das pessoas e as economias mudam o tempo todo. No Brasil, onde as agências têm 20 anos, no máximo, o mundo real ainda está distante do ideal. Mas economias mais desenvolvi­das ensinam que o melhor caminho é trabalhar para aprimorá-las. Não o contrário.

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ANDRE DUSEK/ESTADÃO–30/8/2017 Etapas. Só foram nomeados membros da comissão

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