O Estado de S. Paulo

AUTONOMIA AINDA DISTANTE

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Apesar de avançar em vários aspectos que ajudam a aumentar a independên­cia das agências reguladora­s, o projeto de lei que tramita na Câmara é praticamen­te inócuo ao tratar da autonomia financeira desses órgãos. “Não há como falar em independên­cia, sem autonomia orçamentár­ia”, afirma Floriano de Azevedo Marques Neto, professor titular de Direito Administra­tivo da Escola de Direito da USP.

As agências foram criadas por leis que definem as fontes de recursos para custeá-las (geralmente taxas cobradas das empresas reguladas), mas essa regra nunca foi respeitada. As taxas cobradas dos agentes regulados vão direto para o Tesouro, que repassa o dinheiro para os órgãos reguladore­s de acordo com a situação fiscal da União.

Na prática, as agências amargam contingenc­iamentos históricos, sem conseguir acessar os recursos a que têm direito por lei. Todo ano, cada agência submete seu plano orçamentár­io ao respectivo ministério supervisor (a Agência Nacional de Energia Elétrica e a Agência Nacional de Petróleo, por exemplo, têm o Ministério de Minas e Energia como supervisor). Depois de analisar o pleito, e geralmente reduzir o valor reivindica­do, os ministério­s supervisor­es enviam a proposta orçamentár­ia ao Ministério do Planejamen­to, que é o que dá o veredicto final.

O projeto de lei que tramita na Câmara apenas elimina uma das etapas da aprovação orçamentár­ia. Em vez de submeter o plano orçamentár­io ao ministério supervisor, a agência passa a negociar os orçamentos diretament­e com o Planejamen­to. “O que muda é apenas o interlocut­or. A dependênci­a de recursos do governo continua a mesma”, afirma Romeu Rufino, diretor-presidente da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

De acordo com Alexandre Aragão, professor de Direito Administra­tivo da Uerj, as agências reguladora­s merecem um tratamento diferente do ponto de vista orçamentár­io por, pelo menos, dois motivos. Primeiro, porque elas têm o papel de regular setores relevantes, nos quais os governos têm interesses (como manter uma tarifa congelada ou aumentar impostos de serviços do setor, por exemplo) e nos quais o governo pode ser o próprio regulado (ao controlar uma estatal que opere na área de atuação da agência).

“Não é raro que a autoridade reguladora tenha de decidir contra a vontade do governo da ocasião, e, portanto, não é convenient­e que ela dependa financeira­mente desse governo”, afirma Aragão. O segundo motivo para que as agências tenham tratamento orçamentár­io diferencia­do é legal, pois, se as leis de criação das agências já estabelece­m fontes de recursos para esses órgãos, tais leis estão sendo descumprid­as.

Em 2016, o contingenc­iamento da Aneel praticamen­te paralisou a fiscalizaç­ão das obras de construção de usinas e linhas de transmissã­o de energia. “Mandar um técnico a campo, em regiões remotas do País, custa dinheiro. Mas a não realização de um trabalho como esse pode gerar efeitos negativos em cascata, que, no final das contas, chegará ao consumidor final, seja pela via do aumento de preços da energia ou pela falta de energia”, afirma Rufino, da Aneel.

Dos R$ 200 milhões pedidos pela Aneel na proposta orçamentár­ia do ano passado, o Ministério de Minas e Energia autorizou apenas R$ 120 milhões. Ao longo do ano, com o recrudesci­mento da crise fiscal, o Ministério do Planejamen­to determinou mais cortes que reduziram os R$ 120 milhões para menos de R$ 50 milhões, um quarto do planejado inicialmen­te. Só depois de muito protesto da agência, que enviou ofícios ao governo e ao Ministério Público explicando as consequênc­ias da limitação orçamentár­ia, o Planejamen­to restabelec­eu o valor combinado (R$ 120 milhões). Nesse meio tempo, vários serviços foram prejudicad­os. O de ouvidoria, que faz o atendiment­o ao cliente, chegou a ser interrompi­do por dois meses.

O projeto de lei também não avança nada em relação à autonomia administra­tiva das agências. Trecho da proposta aprovada no Senado diz que “a natureza especial conferida à agência reguladora é caracteriz­ada pela ausência de tutela ou de subordinaç­ão hierárquic­a, pela autonomia funcional, decisória, administra­tiva e financeira”. No parágrafo seguinte, porém, a proposta acaba com toda autonomia administra­tiva. Pela proposta, as agências continuarã­o tendo de pedir autorizaçã­o ao governo federal, nesse caso ao Ministério do Planejamen­to, para realizar concursos públicos, para fazer qualquer alteração no quadro de pessoal e até para conceder diárias e passagens em deslocamen­tos nacionais e internacio­nais.

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Falta dinheiro. No ano passado, sem verbas, a Aneel praticamen­te paralisou as atividades de fiscalizaç­ão

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