O Estado de S. Paulo

PAULICEIA TROPICAL

Relançada, a autobiogra­fia de Caetano Veloso conta como São Paulo se tornou o polo tropicalis­ta ao aliar músicos à poesia concreta, às artes visuais e ao teatro

- Alberto Bombig

Assim como é difícil imaginar o surgimento do movimento punk sem a Londres decadente dos anos 1970 ou o apogeu do movimento hippie sem a ensolarada São Francisco dos 1960, é impossível entender o Tropicalis­mo sem a Sampa de Caetano, Gil, Mutantes, Tom Zé e cia.

São Paulo entrou definitiva­mente na vida de Caetano Veloso (e vice-versa) quando, em 1967, ele e a então mulher, Dedé Gadelha, decidiram morar num amplo apartament­o de um arranhacéu da capital paulista. “Na esquina em frente, via-se o Edifício Itália, um dos mais altos da cidade, e era gostoso viver no coração de uma grande cidade, entre grandes edifícios”, relembra ele no livro Verdade Tropical, que a editora Companhia das Letras acaba de reeditar para marcar os 50 anos do movimento cultural tropicalis­ta.

Gestada na Bahia, nascida e batizada no Rio de Janeiro, a Tropicália encontrou em São Paulo o solo fértil para crescer e disseminar seus ideais de modernizaç­ão e de ruptura. A cacofonia da metrópole inspirou acordes dissonante­s e letras de orientação concretist­a. Exatos 20 anos após seu primeiro lançamento, o extenso e abrangente Verdade Tropical (que trata não apenas da aventura paulistana do autor, mas de toda a sua produção) ainda permanece como a melhor obra sobre a relação da Pauliceia com o movimento tropicalis­ta e as demais vanguardas culturais do século 20 que o influencia­ram.

Em Verdade Tropical, como o próprio Caetano se refere ao livro de autoria dele, a concepção da Tropicália é esmiuçada nas recordaçõe­s que o autor tem da infância em Santo Amaro, na Bahia, do período como estudante em Salvador e do início da carreira de cantor e compositor nos apartament­os do prédio eternizado como Solar da Fossa, no Rio de Janeiro, onde Caetano morou entre 1966 e 1967 e travou contato com o Cinema Novo (gênero cinematogr­áfico brasileiro dos anos 1960). “Se o tropicalis­mo se deveu em alguma medida a meus atos e a minhas ideias, temos então de considerar como deflagrado­r do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha (1939-1981), em minha temporada carioca”, escreve Caetano.

Os dois anos de Rio serviram também para expandir os horizontes de Caetano na literatura, influencia­do principalm­ente pelo livro Panamerica, de José Agrippino de Paula (1937-2007), e pelo convívio com seu autor e com o poeta, jornalista e letrista Torquato Neto (1944-1972). No terreno da música, propriamen­te dita, Caetano conheceu, entre outros compositor­es que se tornariam grandes, Edu Lobo, Paulinho da Viola e Chico Buarque. Foi no Rio que ele começou pra valer sua trajetória profission­al e decidiu radicaliza­r a experiênci­a estética da MPB. Para isso, no entanto, Caetano precisou trocara Cidade Maravilhos­a, berço da Bossa Nova e dos amba-canção, por São Paulo.

“São Paulo era um campo vasto e neutro onde sucessos parciais e setorizado­s, que não dependem de adesão nacional, eram possíveis”, afirma Caetano em seu livro. Do Hotel Danúbio, na avenida Brigadeiro Luís Antonio, no bairro da Bela Vista, Caetano e o também baiano e seu eterno parceiro Gilberto Gil saíram certa noite de 1967 para mudara história da música brasileira em um festival da TV Record. No palco do antigo Teatro Paramount, também na Brigadeiro, eles apresentar­am Alegria, Alegria (Caetano) e Domingo no Parque(Gil ), canções com os primeiros elementos tropicalis­ta seques e tornaram emblemátic­as do movimento.

Nessa altura, a base musical da Tropicália estava praticamen­te toda em São Paulo, onde Os Mutantes foram nascidos e criados (os irmãos Arnaldo Batista e Sérgio Dias na Pompeia, zona oeste, e Rita Lee na Vila Mariana, zona sul), onde Gilberto Gil já trabalhava como funcionári­o de uma multinacio­nal e onde Jorge Bem curtia uma espécie de exílio carioca no bairro do Brooklin Paulista, na zona sul. Havia ainda o maestro Rogério Duprat (1932-2006), Agrippino, de volta à cidade natal, e Tom Zé, trazido da Bahia por Caetano.

Esse núcleo do movimento refletia a diversidad­e regional e cultural da metrópole. Em artigo intitulado Usina Tropipauli­sta, publicado no jornal Folha de S. Paulo, no dia 3 de dezembro de 1995, o maestro Julio Medaglia, colaborado­r do movimento, resumiu: “Coerente com sua vocação de atrair povos, mesclar costumes e comportame­ntos e provocar entre eles um excitante e criativo intercâmbi­o, São Paulo soube também na área cultural catalisar ideias e ações em momentos sensíveis deste século”.

Em VT, Caetano descreve e analisa sua relação com esses “momentos sensíveis” do século 20, mais especifica­mente, a Semana de Arte Moderna de 22 e a Poesia Concreta, dois movimentos vanguardis­tas ambientado­s em São Paulo. Ao modernismo de Oswald de Andrade (1890-1954) e de Mario de Andrade (1893-1945), Caetano chegou pelo teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa, que encenou naquele tempo O Rei da Vela, de Oswald. A relação com o concretism­o foi feita diretament­e com os poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos (1929-2003) e Décio Pignatari (1927-2012).

Ao dialogar e incorporar elementos desses movimentos, a experiênci­a tropicalis­ta também ajudou a organizar uma espécie de “linha evolutiva” (na expressão “caetanísti­ca”) das vanguardas paulistana­s do século passado, recuperand­o seus preceitos e aplicando-os ao Brasil contemporâ­neo, urbano, consumista e de massas. “O mais abrangente acontecime­nto cultural emergido da área da música popular, o tropicalis­mo, só poderia mesmo ocorrer em Sampa. Sua provocação que se estendia por toda a movimentaç­ão cultural viva da época, reunia a música fina e cafona, a poesia de cuíca de Santo Amaro e a poesia concreta, o berimbau e o terem in, a música eletrônica e o bandolim, acrônicas oci aleo intimismo, o sério e o deboche, avanguarda e o tradiciona­l, o vocal e o instrument­al, o experiment­alismo sonoro e o desbunde cênico, o universal e o regional e tudo, enfim, que passasse perto (ou longe)”, afirma Medaglia em seu artigo.

Anos depois da fase heroica do Tropicalis­mo, Caetano eternizou sua passagem por São Paulo e homenageou suas influência­s vanguardis­tas com referência­s aos Irmãos Campos, a Rita Lee e ao Oficina na canção Sampa, uma das músicassím­bolo da cidade:

Alguma coisa acontece no meu coração / que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João /

É que quando eu cheguei por aqui /

Eu nada entendi /

Da dura poesia concreta de tuas esquinas /

Da deselegânc­ia discreta de tuas meninas/

Ainda não havia para mim Rita Lee /

Atu amais completa tradução/

(…)

Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços / Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva

Para todo o sempre, a Pauliceia moldou o Tropicalis­mo e afetou seus expoentes baianos de maneira profunda. Tom Zé, nascido em Irará (BA), radicalizo­u a experiênci­a e vive até hoje na capital paulista. Uma das mais engraçadas passagens do denso e muitas vezes prolixo livro de Caetano trata justamente dessa viagem, quando o matuto Tom Zé pede a uma aeromoça (as atuais comissária­s de bordo) que sirva a ele cachaça. Diante da negativa, ele sentencia: “Pare esta caravela”, e começa a desafivela­r o cinto como se fosse possível saltar do avião.

Caetano e Gil acabaram escolhendo o Rio de Janeiro para morar, sem nunca, no entanto, perderem sua ligação com Salvador e com São Paulo – as três metrópoles cravadas no âmago do tropicalis­mo. Verdade Tropical é um livro rico nos relatos da breve, porém intensa, passagem de ambos pela capital paulista e as consequênc­ias desse encontro para acultura brasileira e a história da MPB.

A Tropicália foi criada em 1967, mas sua pedra fundamenta­l também pode ser considerad­a o disco coletivo Panis et Circensis, lançado em julho do ano seguinte, cinco meses antes do “álbum branco” dos Beatles, ambos sob os eflúvios das revoltas estudantis de Paris e dos protestos nos EUA contra a Guerra do Vietnã. Portanto, a virada deste 2017 para o 2018, que já nos bate à porta, talvez seja a melhor data para a comemoraçã­o do cinquenten­ário. Bananas ao vento.

 ?? TEATRO OFICINA ?? Cores vivas. Cenário de Hélio Eichbauer para ‘O Rei da Vela’, peça de Oswald de Andrade de 1933 que só foi encenada em 1967 no Oficina
TEATRO OFICINA Cores vivas. Cenário de Hélio Eichbauer para ‘O Rei da Vela’, peça de Oswald de Andrade de 1933 que só foi encenada em 1967 no Oficina
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PHILIPS Álbum. ‘Tropicália ou Panis et Circensis’ criou a identidade sonora
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BOSSA NOVA FILMS Baianos. Caetano Veloso e Gilberto Gil, núcleo tropicalis­ta em 1968

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