O Estado de S. Paulo

A reinvenção da ‘Canção da Terra’ de Mahler

Espetáculo imperdível dirigido por Yoshi Oida ganha a forma de pocket-ópera e resgata o impacto original da obra

- João Marcos Coelho ESPECIAL PARA O ESTADO

A direção cênica de Yoshi Oida ilumina de modo arrebatado­r A Canção da Terra, no espetáculo imperdível que estará no Sesc Pinheiros até 14 de janeiro. A distância entre as versões habituais em forma de concerto e essa encenação é imensuráve­l. Oida consegue o milagre de resgatar o impacto original dessas seis canções sinfônicas, ou “sinfonia para tenor e barítono ou contralto e orquestra”, como Gustav Mahler a chamou – aqui reinventad­as como pocket-ópera.

De repente, mas suavemente, somos transporta­dos para uma cerimônia fúnebre budista. O jardim zen japonês convive com o ruído inexorável do moinho d’água. A natureza impõe-se como ator principal no drama do casal que perdeu a filha. O pai, bêbado, retorna depois de muito tempo; a mulher chora as duas perdas, do marido e da filha.

Já imersos nesse microcosmo em que o ciclo vida-mortevida da natureza torna sem sentido o sentimento de perda, nossos ouvidos embarcam numa música camerístic­a translúcid­a, interpreta­da com empenho pela mezzo-soprano Masami Ganev e pelo tenor Miguel Geraldi, acompanhad­os pelo ótimo Ensemble Fukuda e os quatro monges budistas.

Os versos da Canção da Terra foram extraídos do livro A Flauta Chinesa, de 1907, tradução alemã de poemas chineses dos séculos 8.º e 9.º feita por Hans Bethge, a partir de versão francesa. 1907 foi um dos anos mais duros na vida de Mahler: primeiro morreu a sua lha Maria Anna de apenas 4 anos; depois uma campanha antissemit­a da imprensa austríaca o obrigou a demitir-se do posto de diretorger­al da Ópera Imperial de Viena; e, nalmente, diagnostic­ouse sua malformaçã­o cardíaca. Em carta a Bruno Walter, Mahler escreveu: “Tudo aquilo que eu julgava ser desaparece­u de um dia para o outro”.

De fato, a vocação dessa obra é lírica. Oida comprova isso, num gesto de gênio, transforma­ndo-a em “ópera”. O arranjo camerístic­o ressalta o acerto da opção. Mahler acena com o motivo lá-sol-mi, da escala pentatônic­a, para a estética oriental. Uma nova noção de tempo se impõe, a do eterno ciclo da vida e da morte. Yoshi Oida conta, no texto do programa, que trabalhand­o com um grupo mexicano, ofereceram-lhe uma festa de aniversári­o por seus 40 anos. “Quando cantaram ‘feliz morte’, surpreso perguntei-lhes por que não feliz aniversári­o? Respondera­m que o nascimento e a morte são a mesma coisa, sendo a morte a preparação para o nascimento, e o nascimento a preparação para a morte. Ambos são eventos felizes.”

Masami Ganev e Miguel Geraldi encarregam-se de três canções cada um. Mas o maior desafio sem dúvida é o de Ganev, na sexta, “A Despedida”, que dura quase o mesmo que as cinco anteriores. Os versos são de dois poetas chineses do século 8.º. Os derradeiro­s versos são do próprio Mahler: “Em toda parte a amada Terra/ Floresce na primavera e reverdece/ Uma vez mais! Em toda parte eterno/ Azul resplandec­e na imensidão!/ Eterno... Eterno...”.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil