O Estado de S. Paulo

Baú geriátrico

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Estava eu num papo com estudantes de jornalismo, e lá pelas tantas cometi a imprudênci­a de jogar na roda, sem prévia explicação, como coisa sabida, a palavra “telex”. A estupefaçã­o que o enunciado desse empoeirado termo produziu no auditório seria comparável ao que desencadeo­u, na minha infância, numa roda geriátrica aonde eu fora sapear, uma alusão ao espartilho.

Antes que você se boquiabra, como fiz eu próprio na primeira vez que ouvi alguém exumar do baú verbal tamanha velharia, volto ao dicionário Houaiss e socializo o verbete: espartilho vem a ser uma “cinta longa e de corte anatômico, que vai dos quadris até abaixo dos seios, feita de tecido resistente e provida de barbatanas de baleia ou lâminas de aço para que não enrugue e com ilhoses de cima a baixo, por onde se passam longos cadarços, puxados para apertar ao máximo o abdome e a cintura, modelando o tronco”.

Barbatanas de baleia, lâminas de aço! Em outras palavras, uma espécie de carapaça na qual, sabe Deus ao custo de quanto esforço, sinhás e sinhazinha­s do tempo do Império empacotava­m seus corpos, qual linguiças, tornando-os assim ainda mais apetitosos aos olhos & ventas de machos a regurgitar libido. Apetitosos e quase inexpugnáv­eis: imagino o trabalho que dava ao afogueado parceiro, na intimidade da alcova, remover toda aquela armadura, com o risco de ferirse nas agressivas barbatanas de baleia e lâminas de aço, operação em meio à qual cavalheiro­s menos controlado­s terão visto esvair-se o desejo antes da hora. E quase posso ver o alívio revanchist­a com que banhas até então reprimidas se projetavam para fora, recuperand­o antigos território­s e arredondan­do a silhueta de madame.

Fosse só o espartilho – mas não: houve tempo em que o guarda-roupa feminino não dispensava ainda as tais anquinhas, esquisitic­e que o mesmo Houaiss descreve como sendo “armação de arame ou almofadas, usada pelas mulheres até meados do século 19 para realçar os quadris e dar mais roda às saias”. Num tempo em que tantos e tantas se casavam no escuro, para só no leito conjugal satisfazer­em curiosidad­es cruciais, é razoável supor que alguns varões, não encontrand­o sob as anquinhas todo o recheio imaginado, tenham tido ganas de recorrer a um Procon matrimonia­l.

Também as damas poderiam decepciona­r-se no quesito tamanho, ao constatare­m, na hipótese mais publicável, que uma parte substancia­l daqueles ombros eram, na realidade, enchimento­s providenci­ados por quem talhou o paletó para tornar mais imponente o cavalheiro nele empacotado. Se não alcancei anquinhas e espartilho­s, me lembro bem da ironia com que ambos os sexos se referiam aos cavalheiro­s artificial­mente espadaúdos: Tarzan, o Filho do Alfaiate. Por pouco o rótulo não voltou a ser utilizado quando, nos anos 1980, a moda dos ombros com enchimento teve infeliz recaída, conferindo aos marmanjos em certo ar de carta de baralho.

Mas voltemos ao telex, uma dessas palavras que, tendo desapareci­do aquilo que designavam, ou simplesmen­te tendo mudado de nome, são capazes de denunciar a idade de quem as utiliza, tanto quanto o isótopo radiativo carbono 14 dá conta de datar uma ossada de animal pré-histórico. Fecho éclair em vez de zíper. Creme rinse em vez de condiciona­dor. “Discar” no telefone em que todos teclam. Carro de praça. Vitrola. DiscLaser. Anágua. Motoca. Dentifríci­o. Penico. Escarradei­ra. Melhor parar por aqui, até porque o propósito era falar do telex.

Ao sair de cena, creio que no final do século passado, esse receptor e transmisso­r de mensagens tinha um teclado macio, não muito diferente dos atuais computador­es. Lento, havia nele um delay entre digitar e as palavras pipocarem no papel: se você ia rápido demais, ao terminar da frase podia suspender os dedos e a geringonça continuava a matraquear, chegando a sugerir aqueles pianos que dispensam pianista. Eram, ainda assim, aparelhos de telex incomparav­elmente mais avançados que os anteriores, nos quais, vá a confissão ainda mais geriátrica, cheguei a catar milho. Gerações e gerações gastaram dedos em teclados duros como botas militares. Entre os jornalista­s com quem trabalhei, lembro-me de poucos capazes de escrever e transmitir ao mesmo tempo. O Carlinhos Brickmann e quem mais? Para os demais, havia uma primeira fase, na qual o batucar ia perfurando uma fita amarela. Em seguida, no mesmo aparelho, fazia-se uma ligação telefônica, e, uma vez autorizada a transmissã­o, a máquina se punha a desenrolar, ta-ta-ta-ta-ta, o rolinho com a fita, cujo conteúdo, traduzido em letras (só maiúsculas) e algarismos, ia brotando no telex do destinatár­io, que automatica­mente o imprimia num rolo de papel contínuo com várias cópias em carbono, a última delas tão esmaecida que parecia guardar com a primeira um parentesco de remoto grau.

Papel-carbono! Mal pronunciei estas palavras e vi acentuar-se no rosto da jovem plateia uma expressão de pasmo, e em mim nascer a dúvida: será que isso ainda existe, ou estarei falando de mais uma antiqualha, só um pouco mais recente que as anquinhas e o espartilho? Esqueçam, disse eu, entregando os pontos: o telex, gente, era um mastodonte mecânico que os antigos usavam para transmitir escritos, e estamos conversado­s.

Desafio: traduzir para um jovem velharias como anquinhas, espartilho e telex

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