O Estado de S. Paulo

Uso em reprodução humana é visto com cautela por cientistas

Preocupaçõ­es técnicas e éticas sugerem que aplicação seja restrita a casos de doenças graves e incuráveis

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A possibilid­ade de se modificar o DNA de embriões humanos com relativa facilidade – graças ao crisper – é vista com entusiasmo e cautela pela comunidade científica internacio­nal, que vem debatendo o assunto intensamen­te nos últimos anos.

Em uma conferênci­a realizada em 2015, as Academias Nacionais de Ciência, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos concluíram que a técnica só deveria ser usada para fins de pesquisa em laboratóri­o, e não para a implantaçã­o de embriões no útero. Agora, em um novo relatório lançado no início deste ano, a conclusão é de que ela pode, sim, ser usada para fins de reprodução humana, desde que seja para evitar a ocorrência de doenças graves e sem cura.

Ainda assim, muitos acreditam que a principal aplicação da técnica será para fins de pesquisa, visto que já é possível evitar a transmissã­o de doenças genéticas pela seleção de embriões sadios, em vez de tentar corrigir aqueles que têm a mutação.

“Como ferramenta de pesquisa é uma coisa extremamen­te poderosa”, diz a pesquisado­ra Lygia Pereira, do Instituto de Biociência­s da USP. Para fins reprodutiv­os, “é mais fácil selecionar do que editar”.

Opções. A arquiteta Júlia Xavier, de Belo Horizonte, viveu essa situação. Ao saber que tinha herdado a mutação ELA8 do pai, Cezar, ela optou por fazer uma fertilizaç­ão in vitro e selecionar os embriões livres da doença. Desse processo nasceram os gêmeos Théo e Giovanna.

Ao contrário da maioria de seus parentes, que preferem não saber, Júlia fez questão de se testar para descobrir se era portadora da mutação. Aos 30 anos, ela ainda não tem sintomas, mas sabe que eles vão aparecer. “Conviver com a dúvida para mim era muito pior”, justifica.

Sobre a possibilid­ade de um dia, quem sabe, fazer uma terapia gênica com crisper para desligar a mutação em seu organismo, Júlia diz que “seria cobaia na certa”. Ela também participa do projeto de pesquisa da geneticist­a Mayana Zatz.

Mayana concorda que é mais fácil selecionar embriões, mas lembra que muitas mulheres produzem poucos e, por isso, podem não ter essa opção de escolha. Nesses casos, o crisper seria uma alternativ­a.

Cautela. O entusiasmo é justificad­o, mas a cautela também, diz a pesquisado­ra Angela Saito, do Laboratóri­o Nacional de Biociência­s (LNBio), do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, que utiliza crisper para gerar camundongo­s com mutações associadas a doenças do sistema nervoso.

Apesar de ser uma técnica bastante eficiente, diz ela, o crisper não é livre de riscos. O principal deles é o de causar alterações em outras partes do genoma, além da mutação alvo. A acurácia, segundo ela, varia de acordo com o gene e o organismo envolvidos na pesquisa. “Tem de pesar os riscos e os benefícios na balança”, diz.

Eugenia. Outra preocupaçã­o, de natureza ética, refere-se ao possível uso do crisper para fazer alterações no genoma não relacionad­as à cura de doenças, mas a razões “cosméticas” ou visando à introdução de vantagens físicas ou cognitivas, tipo força ou inteligênc­ia.

“O risco existe e temos de estar preparados”, diz o médico Dirceu Greco, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. “A pesquisa tem de ser incentivad­a, sempre; mas deve ser feita da maneira correta, com regras claras e com precaução.”

“São preocupaçõ­es importante­s, às quais as agências regulatóri­as precisarão estar atentas”, avalia Angela.

“Temos agora uma ferramenta de modificaçã­o do genoma com uma eficiência que eu nunca imaginei que fosse possível. Acho que vai acelerar a chegada da terapia gênica ao uso clínico.” Lygia Pereira PESQUISADO­RA DA USP

 ?? JUSTIN KNIGHT / MIT-22/10/2012 ?? Prevenção. Embriões modificado­s com crisper são normais
JUSTIN KNIGHT / MIT-22/10/2012 Prevenção. Embriões modificado­s com crisper são normais

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