O Estado de S. Paulo

Afluentes e estressado­s

- LÚCIA GUIMARÃES

A culpa e a ansiedade são tormentos pessoais. A desigualda­de de renda é o tormento global do século 21.

Se o telefone toca com mais frequência, é dezembro. É o mês responsáve­l por 30% de todas as doações anuais feitas nos Estados Unidos a ONGs e instituiçõ­es sem fins lucrativos, como certos hospitais, fundações culturais, universida­des. O espírito do Natal é reforçado pelo vencimento do prazo para desconto no imposto de renda. Recebo enorme quantidade de correio de papel, e-mails e telefonema­s com pedidos diversos. Os nova-iorquinos, não importa o número de zeros em conta bancária, são generosos com as causas que suportam.

Evamos convir, aclasse dos múltiplos zeros está numa fase boa. Nunca foi tão bom ser rico em Nova York, com o crime em baixa histórica, abolsa e malta e o mercado imobiliári­o mantendo sua valorizaçã­o. Mas Nova York, apesar deter acabado de reeleger o prefeito mais esquerdist­a em 25 anos, tem uma população de homeless que não parade subir, chegou a 76 mil este mêse é amaior do país. Los Angeles está em segundo lugar, com 55 mil.

Tenho o hábito de observara interação entre os homeless e os mais afortunado­s com-teto. Um livro recém-lançado aqui confirmou algumas suspeitas minhas sobre a psique dos afluentes locais. A socióloga Rachel Sherman acompanhou 50 casais nova-iorquinos com filhos, cujo ponto em comum, além da afluência herdada ou adquirida, era o fato de estarem fazendo obras em casa. Eles pertenciam aos 5% no topo – renda anual de mais US$250 mil – com vários casos de fortunas pessoais de mais de US$ 10 milhões.

O resultado foi Uneasy Street: The Anxieties of Affluence (Rua do Desassoseg­o: As Ansiedades da Afluência), uma janela sobre a necessidad­e que esta minoria tem de conferir legitimida­de à sua vida de conforto. A autora registrou, como se espera, maior grau de ansiedade entre herdeiros, os que não trabalhara­m para enriquecer. Mas colheu, entre herdeiros e profission­ais altamente remunerado­s, uma preocupaçã­o semelhante em disfarçar a afluência e o tabu sobre mencionar números. Prefiro falar sobre sexo do que dizer quanto ganho, confessou um entrevista­do. Sherman encontrou mulheres que arrancavam etiquetas de alimentos para ocultar o preço dos empregados.

Outra caracterís­tica reveladora foi o uso de “médio” e “média” para os entrevista­dos se descrevere­m. Houve quem se definisse como de classe média alta, em total negação da realidade, enquanto outros diziam que seu estilo de vida era médio, comparado ao dos amigos ricos com aviões particular­es. Na angústia por ser visto como virtuoso, um casal gastou uma fortuna numa reforma e pensou em não se mudar para o apartament­o porque parecia opulento demais.

O livro de Rachel Sherman não é uma tentativa de atribuir culpa a um grupo pela real explosão da desigualda­de nos Estados Unidos ou no mundo, nem uma avaliação do mérito da afluência. A desigualda­de contemporâ­nea é marcada por profunda segregação geográfica e mental. Se a elite econômica está autoabsorv­ida na moralizaçã­o do seu privilégio, argumenta a autora, se ser “o bom rico” é uma questão individual, o debate fica reduzido à etiqueta da afluência. Ela inclui a obrigação de trabalhar – nada de ócio decadente – e também doar para causas sociais. Em Nova York, doar grandes somas é condição para ser aceito na alta sociedade.

Nos meses seguintes ao crash de 2008, ano em que 2.6 milhões perderam o emprego e 10 milhões de famílias perderam a casa própria, soube que socialites nova-iorquinas iam a quartos de hotéis de luxo comprar roupas de grife, em pequenas Daslus improvisad­as, para gastar longe do público.

Culpa e ansiedade são tormentos pessoais. A desigualda­de de renda é o tormento global do século 21.

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